Só entrou pela primeira vez num avião quando tinha 20 anos, mas as viagens estão-lhe no ADN — ou não tivesse tido um trisavó que abandonou a mulher porque decidiu dar a volta ao mundo. Uma viagem à Amazónia fê-lo pôr a vida em perspetiva, de tal forma que meses depois decidiu partir para Moçambique para fazer voluntariado. Desde então têm sido viagens atrás de viagens — até vendeu o Porsche só para se fazer à estrada mais um bocadinho.
No dia 26 de junho, às 20 horas, Ângelo Rodrigues vai partilhar pela primeira vez o documentário que realizou sobre a sua experiência enquanto voluntário. Durante um mês, o ator e modelo de 29 anos deu aulas de representação a miúdos. Diz que não tem palavras para descrever o que sentiu por lá.
Leia a entrevista de Ângelo Rodrigues.
Lembra-se da sua primeira viagem?
Foi para um parque de campismo no Minho, em Vila Praia de Âncora. Devia ter uns seis ou sete anos. São as minhas primeiras memórias de viagens. Os meus pais não tinham grandes possibilidades financeiras — aquela viagem clássica de verão para o Algarve só fiz aos 18 ou 19 anos. Portanto, as minhas viagens grandes, de verão, eram passadas no Minho, em regime de acampamento.
Era uma espécie de tradição de família?
Sim, acabava por ser. Os meus pais gostavam muito de acampar, por isso ganhei esse gosto por causa deles.
Acha que eles o inspiraram a viajar?
De certa forma sim. Mas depois vim a saber de uma história de família e percebi que este meu gosto pelas viagens foi um bocadinho herdado.
Que história de família é essa?
Eu tinha um trisavô que queria viajar pelo mundo, e que portanto abandonou a mulher, a minha trisavó, para o fazer. Passados muitos anos, aproximadamente 20, estava completamente falido, sem posses económicas nenhumas, e resolveu vir a pé de França para Portugal. A minha família é natural do Minho e Trás-os-Montes, e tinha muito a tradição de dar comida aos pobres. Tudo o que eram sobras dos almoços ou dos jantares, era oferecido. Houve um dia em que a minha trisavó estava a fazer isso quando ouviu alguém dizer: “Não te lembras de mim? sou o teu marido.” Esta é uma história que corre na minha família há várias gerações.
Ele acabou falido, mas correu o mundo.
Pois, está a ver? Há esta pulsação na minha família, de viajar de forma inconsequente. Isso deve ter passado de alguma forma para mim.
Quando é que fez a sua primeira viagem de avião?
Foi quando estava a gravar “Morangos com Açúcar”, fomos à Polónia. Foi a minha primeira viagem de avião, tinha 20 anos.
Nesse momento abriu-se o mundo?
Sim, sem dúvida. Gradualmente fui ganhando o gosto pelas viagens, e o gosto de gostar de viajar sozinho.
Começou a viajar com mais frequência no último ano, não foi?
Não. Talvez nos últimos cinco anos. Foi quando comecei a levar isto das viagens mais a sério.
[Risos] A ideia utópica é conhecer todos os países do mundo, mas isso vai ser um bocado complicado.
Vê-se a chegar aí?
Não sei, acho que não. Não é o meu objetivo ter mais um carimbo no passaporte; fazer escala num aeroporto ou passar 24 horas num sítio e dizer que já o conheci. Não, acho que um dos meus objetivos mesmo era passar um mês em cada país do mundo. Sei que isto será impossível, mas vou tentar fazer uma seleção nos próximos anos.
Vamos falar então sobre as suas viagens. Esteve com uma tribo na Amazónia, não foi?
Sim, em março do ano passado. Foi life-changing, mudou mesmo a forma como eu via a vida. Há uma vida antes da Amazónia e depois da Amazónia, hoje em dia sei claramente disso.
A post shared by ❂ Ângelo Rodrigues ❂ (@angelorodrigues_oficial) on
Como é que surgiu essa viagem?
Partiu da minha vontade de visitar a Amazónia e de ter uma experiência de sobrevivência. Ver como é que uma pessoa sobrevive na Amazónia.
Não era aquela coisa de ir para um hotel de cinco estrelas.
Não, nada disso, cada vez mais fujo disso. Isso não é estares embrenhado numa cultura, é ires para um hotel de pulseirinha, e isso podes fazer em qualquer parte do mundo. Não é a minha ideia de viajar.
Como é que organizou a viagem para a Amazónia?
Procurei um guia turístico que fosse mesmo da Amazónia. Ele tinha um nome engraçado, era o Rambo [risos]. Era um filho da Amazónia, nascido e criado lá. Foi a pessoa perfeita. Convidei um amigo meu, o Paulo Vintém, para fazer esta aventura comigo, e durante quase 15 dias tivemos uma experiência de sobrevivência. Tínhamos de pescar e caçar para comer, acampávamos no meio da floresta profunda.
A post shared by ❂ Ângelo Rodrigues ❂ (@angelorodrigues_oficial) on
E como é que chegaram à tribo?
Depois da experiência fomos “coroados” com o poder de visitar uma tribo de indígenas. Estivemos a viver com eles durante dois dias. O que mais me impressionou nessa viagem foi ver como é que eles viviam, e de como não precisavam de nada para serem felizes — ou pelo menos esta ideia que o ocidente tem da “felicidade”.
Quando é que decidiu fazer voluntariado?
Eu fui para a Amazónia em março de 2016 e juntei-me à Helpo, uma organização não-governamental (ONG), em junho.
E porquê?
Veio no seguimento da minha viagem à Amazónia. Fiquei de tal forma arrebatado com essa experiência que fiz uma promessa inconsciente: comecei a procurar coisas que de facto me engrandecessem por dentro. Acabei por mudar de país, comecei a viver no Rio de Janeiro, e queria muito ter uma experiência de voluntariado.
Para onde é que foi?
Fui para a Ilha de Moçambique. Foi uma coisa muito rápida, fui bater à porta da ONG e três semanas depois estava “largado” em Nampula, no norte de Moçambique, com três turmas: duas de miúdos de cinco e seis anos, e uma de miúdos dos dez aos 12 anos. Dei aulas de segunda a sexta-feira. Passado um mês apresentámos uma mini peça de teatro.
Deu aulas de representação, certo?
Sim. Acabei por lhes dar algumas noções básicas de teatro, exercícios de desinibição, integração, espírito de grupo. A minha expectativa não era essa, a minha faixa etária ideal era dos dez aos 15 anos. Entretanto chego lá e dizem-me que tenho miúdos dos cinco e seis anos. Tive que me desenrascar de alguma forma. E foi muito interessante, porque através desses jogos teatrais eles começaram a fazer teatro sem saberem o que era teatro.
Foi uma experiência gratificante, sentir que estava a ensinar-lhes algo?
Claro. Eu sei que eles tiveram aulas que nunca tiveram na vida. E é por isso que tudo o que possa vir de nós, de quem queira fazer voluntariado, é sempre bem-vindo. O documentário também vem no seguimento disso, para ajudar a desmistificar coisas que nós pensamos em relação ao voluntariado.
Como por exemplo?
Que nos vamos sentir completamente desintegrados, que é uma realidade muito distante.
E não é?
Não é, não é. Nós demoramos seis horas a chegar lá, daqui ao Porto do comboio são três. É ir e voltar e estás em Moçambique.
É um objetivo do documentário, mostrar que é possível?
A post shared by ❂ Ângelo Rodrigues ❂ (@angelorodrigues_oficial) on
Fez também uma viagem à China com a sua irmã, não foi?
Sim, em fevereiro deste ano. Foi a primeira viagem que fiz com a minha irmã enquanto adulta. Eu saí de casa com 18 anos, e como sou um filho desnaturado e um irmão desnaturado, vou poucas vezes a casa. Isso fez com que perdesse um pouco o elo de ligação com a minha irmã na adolescência, até porque nós não tínhamos uma ótima relação. Éramos um bocadinho como o gato e o rato.
Então decidiram viajar para estreitar laços?
No último Natal sentámo-nos a conversar sobre a possibilidade de fazer uma viagem para nos conhecermos enquanto adultos, dez anos depois.
Qual é a vossa diferença de idades?
Dois anos, dois anos e meio.
Então e onde é que foram?
Atravessámos a China toda de comboio, e acabámos no Everest.
Gostava de explorar essa viagem ao Everest. Em primeiro lugar, como é que foi o planeamento?
Nós achávamos que ia ser muito mais fácil entrar no Tibete do que foi. É muito complicado. Como é uma região ocupada por um regime ditatorial, pela China, para entrarmos é sempre preciso ter autorização do governo. Há uma série de vistos e burocracias. Não podes ir num regime de freestyle, backpacker, não, isso não existe. Tem de ser tudo tratado e informado previamente ao governo chinês.
Quão exaustivo é esse processo?
Tens de dizer a que horas chegas, qual é o meio de transporte que vais utilizar, quando é que vais sair, o hotel onde vais ficar, com que agência de turismo é que fechaste um pacote, a que horas é que vai estar nos sítios. É tudo previamente descriminado e aceite pelo governo chinês. É a única forma de teres autorização para lá ir.
E subir ao Monte Everest? Não pode ser freestyle, calculo.
Não, freestyle não pode ser de certeza, porque senão morres. Nós tivemos um regime de aclimatização desde que chegámos a Lhasa, a capital do Tibete, que já era a três mil e tal metros de altitude. Tivemos quatro ou cinco dias até ao Everest, e depois chegámos aos 5.200 metros. O Everest tem 8.848.
Como é que foi chegar lá acima?
Foi a coisa mais difícil e mais exigente que fiz na minha vida.
A post shared by ❂ Ângelo Rodrigues ❂ (@angelorodrigues_oficial) on
O que é que se sente fisicamente?
Sentem-se coisas muito desagradáveis: dores de cabeça constantes, o corpo extremamente pesado, como se fosses uma idosa de 80 anos. Cada movimento que fazes torna-se extremamente pesado, mas nas coisas mais básicas. Quando tomas banho, por exemplo, e estás a ensaboar o corpo, tens de esperar porque te cansas, ficas ofegante. Se estiveres a jantar, tens de gerir a energia entre cada garfada que levas à boca. E é isso. Depois ficas com as extremidades dormentes — não sentes o nariz, não sentes as pontas dos dedos, das mãos, dos pés. A própria dicção fica afetada.
Começa a falar de forma enrolada.
Exato. Estive em sítios onde estavam 26 graus negativos, portanto não foi nada fácil.
Teve algum tipo de preparação física para esta viagem?
Pensei que fosse ser muito importante, mas acabou por se revelar o contrário. A minha irmã, que pouca preparação física tem, saiu-se melhor do que eu. Eu fiz alguns treinos, já virados para a altitude, só que de nada me valeram. Não sei, deve ser alguma predisposição genética que tens para aguentar a altitude. Eu não a tinha claramente [risos].
No programa “Maluco Beleza”, do Rui Unas, disse: “Nunca estive tão pobre mas nunca fui tão feliz”. É mesmo assim?
É, é mesmo assim.
Disse também que vendeu o Porsche para ir viajar.
Sim.
Isto foi para financiar que viagem?
Foi para financiar o meu último ano de viagens. Aliás, foi uma consequência da minha viagem à Amazónia. Sai de casa, vendi o meu carro, fui viver para outro país. Houve um certo desligamento do lado material, do apego que tinha em relação às coisas materiais. Vi que não valiam a pena. Vi que eram demasiado dispendiosas para aquilo que eu queria de facto fazer, que era viajar.
Podia utilizar esse dinheiro para fazer outras coisas.
Exatamente. Fiquei mais pobre em dinheiro mas mais rico a nível espiritual.
Um ano depois, continua assim? Desligado dos bens materiais?
Completamente. E é engraçado, porque olho para os meus amigos, e por esta obsessão generalizada pelo consumir e pelo materialismo, e vejo que gradualmente vou ficando diferente. Olho para as coisas com outros olhos.
E onde é que fica a representação no meio disto? Uma coisa não invalida a outra?
Acha que não, ou pelo menos quero acreditar que não. O último ano acabou por servir de protótipo para aquilo que gostaria de fazer nos próximos anos: posso estar em qualquer parte do mundo, e se for requisitado ou convidado para um projeto que me estimule artisticamente, volto. Foi o que fiz no ano passado, depois de Moçambique voltei para fazer uma série [“Ministério do Tempo”] e depois voltei para as minhas viagens. Acho que uma coisa não invalida a outra.
Gostava de se profissionalizar nas viagens, ou para já ainda é um hobbie?
A post shared by ❂ Ângelo Rodrigues ❂ (@angelorodrigues_oficial) on
Conte-me a história mais engraçada que viveu durante uma viagem.
Houve uma viagem que fiz à América do Sul, onde predispus-me a visitar o Peru, Bolívia, Argentina, China e Brasil. Comecei pelo Peru, fui a Machu Picchu, que para mim foi uma das coisas mais emocionantes que vi na vida. A seguir fui para a Bolívia, e assim que cheguei fui vítima de crime organizado pelos taxistas. Fiquei logo sem iPhone.
Como assim, crime organizado?
Deixei o meu telemóvel em cima do banco no táxi. Lembrei-me assim que cheguei ao hotel. Voltei para o aeroporto e claro que ninguém sabia de nada. Depois explicaram-me que era um grupo de crime organizado que assaltava turistas. Pronto, fiquei logo sem iPhone, sem forma de me conectar com o mundo.
E depois?
Eu gosto tanto de conhecer a vida diurna das cidades como a vida noturna. Gosto de perceber como é que cada cidade se move dependendo da hora. Queria muito conhecer os bares de La Paz, só que fechavam muito cedo — alguns à meia-noite, outros às duas da manhã. Depois disso não havia mais nada. Eu perguntava aos taxistas onde é que me podiam levar, mas nenhum deles sabia. Acabaram por me levar a um bar de um hostel, que era tudo o que eu menos queria. À meia-noite aquilo começou a fechar.
Portanto, já não tinha mais opções.
Sim. Apanhei um táxi para voltar para o hotel, mas perguntei ao motorista se havia algum sítio que ele conhecesse. Ele disse-me que conhecia um lugar que estava aberto até às duas da manhã.
A loucura.
Ele levou-me para um beco muito escuro, um lugar muito suspeito, e disse-me: “Olha, ali naquela esquina, é ali o bar”. Contra todos os meus instintos, que me diziam que eu não podia estar ali àquela hora, fui. Entrei no bar, que tinha um corredor muito escuro e depois dois pisos. Em cima havia celas — celas mesmo, de prisão —, mas depois começo a olhar à minha volta, vejo um varão e percebo que estou num bar de strip.
Pronto, podemos respirar fundo.
Sim. Sentei-me, pedi uma bebida, inocentemente duas meninas vêm ter comigo e sentam-se na minha mesa. Eu pus-me mais à vontade, tirei o casaco, a certa altura fui à casa de banho. Entretanto a conversa passou, super agradável, elas muito falsamente interessadas, e eu vou para pagar, meto a mão no casaco e não tenho lá a carteira. Percebi logo que uma delas me tinha assaltado. Portanto, neste momento estou sem iPhone e sem carteira.
Como é que se safou dessa?
Uma das strippers emprestou-me dinheiro para eu voltar para o hotel. Provavelmente a mesma stripper que me assaltou. E pronto, esta foi a minha primeira experiência na Bolívia.
Perguntei pela aventura mais engraçada. E a mais emotiva?
Na Amazónia, sem dúvida. Eles eram uma comunidade de 30 e tal pessoas, a tribo ficava numa falésia na floresta profunda da Amazónia. Quando nos fomos embora, dois dias depois, descemos a falésia para ir ter com a pessoa que nos foi lá levar de canoa e que ia levar de volta. Foi uma despedida emotiva, prometemos que íamos voltar, entrámos na canoa, e assim que estamos a passar o rio, olhamos para trás e vemos as 30 e tal pessoas a aproximarem-se da falésia e a dizerem adeus.
A post shared by ❂ Ângelo Rodrigues ❂ (@angelorodrigues_oficial) on
Isso deve ter sido muito tocante.
Nós estávamos completamente emocionados, a chorar. O senhor que estava a conduzir a canoa disse-nos: “Olhem, eu faço este percurso há muitos anos. Eles nunca fizeram isto na vida. Não sei o que é que fizeram por lá, mas alguma coisa de especial foi.” Epá…
Isso é muito querido.
É por isto que viajo, percebe? São estas coisas que nos engrandecem.
Não há Porsche nenhum que valha isso.
Que possa pagar isso? Claro que não.
Bem, agora vou virar o chip para Portugal. O que é que o fascina por cá?
Tanta coisa. O meu Norte, o meu Douro, o Porto, a luz de Lisboa, a Costa Vicentina, a nossa gastronomia. Nós somos a junção de tudo o que de melhor há no mundo.
Muitos viajantes dizem-me que quanto mais viajam lá fora, mais gostam de Portugal.
Sim. Já se está a tornar cliché dizer isso, eu até já evito, mas é mesmo verdade. Absoluta verdade. Infelizmente quem não viaja não dá valor ao que tem, e se as pessoas pudessem viajar mais, veriam que nós temos qualidades que são ímpares. Nós vivemos tão adormecidos e anestesiados. Tivemos um passado tão resplandecente no século XVI, com os Descobrimentos, e algures nestes 500 anos que passaram, parece que Portugal adormeceu. Como [Fernando] Pessoa diz na “Mensagem”, há qualquer coisa do Quinto Império que está adormecido. Parece que são precisas pequenas vitórias, que parecem tão insignificantes por um lado mas tão importantes por outro. Um Festival da Canção…
Ou o Europeu de Futebol.
Sim. Os portugueses têm um problema de auto-estima gigantesco. Era bom que viajassem mais para perceberem que nós temos um País do caraças.