Só tenho memória de dois casos malucos de rebeldia sem causa, um fenómeno secular de amuos tontos de filhos pseudo-adultos-parvos Vs. pais. Um até sei a data de cor e salteada: 12 Maio 1993. Está a dar na televisão um jogo importante de futebol, a final da Taça das Taças entre Parma e Antuérpia. Lá em casa, o pessoal diverte-se à grande. O avô conta piadas a torto e a direito, o pai ri-se a bandeiras despregadas e eu, mais animado que nunca, conto uma novidade: ‘quero ir de férias em agosto para Itália com a família de um amigo da escola.’ O avô continua a contar piadas, como se o pedido lhe entrasse por um ouvido e saísse pelo outro. O pai tapa os ouvidos e faz aquela cara do ‘é o quê?’ Errrr, férias, amigo, André, Itália. Animado, eu. Ainda. Not for long. O pai corta-me as vasas. Não, não e mais não. Ponto final. O jogo está 1-1 e abandono a sala. Amuado.
O segundo momento está meio nublado na memória. É antes ou depois de 1993? Faço puto ideia. É daqueles sábados de rituais insonsos: acordar cedo, descer a rua, apanhar o autocarro da Barraqueiro ou da Isidoro Duarte até Entrecampos, ir de metro para Sete Rios, brincar ao ténis por uma hora nas escola das Laranjeiras, ir a pé até à casa da avó na Columbano Bordalo Pinheiro, ver um episódio do Tartarugas Ninjas, almoçar com o tabuleiro em cima das pernas no sofá mais fofo da história, adormecer com o filme da tarde e acordar antes das cinco para a boleia dos meus pais até casa.
Um sábado tudo foi bem diferente. Quer dizer, continuo a apanhar bonés no ténis. O problema é a hora de chegada dos meus pais, muuuuito para lá do habitual. Assim mesmo, sem explicação nem nada. Baaaaah, acciono o alerta vermelho. Amuo, aqui vai ele. Chegado a casa, arrumo o Spectrum num saco do lixo e atiro-o do 11.º andar até ao contentor. Quando se dá conta disso, lá mais para a noite, o meu pai faz uma cara que só visto. Contado nem se acredita. E aguenta-se, sem espingardar uma palavra nem rebentar pelas costuras. Basta-me aquela cara à porta do quarto para entrar em modo mute ao pequeno-almoço do dia seguinte. A partir daí, amigos para siempre.
Dois casos malucos. Só dois. Que me lembre, claro. A minha mãe há-de sempre dizer que, uma vez, atirei-lhe o carro de supermercado contra o tornozelo. Sem querer, óbvio. Culpado, como é evidente. Tudo isto a propósito do belíssimo “Lady Bird”, de Greta Gerwig. Que conta precisamente isso, os dramas adolescentes entre vozes alteradas, frustrações e ilógicas associadas a um universo de incompreensível pré-maturidade. Lady Bird é Christine McPherson (Saoirse Ronan), filha de Marion (Laurie Metcalf) e Larry (Tracy Letts). Lady Bird é, no fundo no fundo, a realizadora Greta Gerwig entre a vida rotineira em Sacramento e o desejo de estudar fora dali, numa cidade com mais cultura, como Nova Iorque, como contraponto. Há ali pedaços de Gerwig, magnífica actriz naquele “Frances Ha” (2012), transformada em realizadora de primeira água, aos 34 anos de idade.
É um filme envolvente desde a primeira cena (a da saída abrupta de Lady Bird do carro, guiado pela mãe). É um filme de alegria contagiante, porque todos nós já fomos impacientes na hora de tomar uma decisão importante, desde a perda da virginidade à do amor correspondido com uma pessoa nada a ver connosco. O erro está presente em Lady Bird, sobretudo nas discussões constantes com a mãe. A falta de sintonia em quase tudo é gritante e o silêncio entre as palavras cruéis é ensurdecedor . E depois há momentos sublimes como a cena da loja em que se passa de um diálogo áspero à emocionante exclamação conjunta “é perfeito” sobre um vestido para o dia de acção de graças.
Tal como a Greta Gerwig do “Frances Ha” passa a vida totalmente desalinhada com a dos restantes comuns mortais, Lady Bird quer encontrar o seu espaço à força, seja na universidade, seja no círculo amoroso. Tal como Frances Ha, Lady Bird é uma colagem de trapalhadas honestas e imaturas, próprias de quem vive tudo a mil a hora contra tudo e contra todos, sobretudo a mãe.