Fui ao Centro Colombo, em Lisboa, assistir à antestreia do filme “Tony”, o mais recente documentário de Jorge Pelicano sobre o fenómeno de popularidade que é Tony Carreira. Estreia esta quinta-feira, 25 de julho. Como muitos dos que estavam naquela sala, já tinha visto algumas reportagens sobre o músico e conhecia genericamente a sua história de vida, por isso levei um pacote de pipocas para ter alguma coisa com que me entreter caso o filme fosse uma seca. Reparei que a Cinha Jardim fez o mesmo, já Fernando Medina preferiu arriscar tudo e não levou snacks, mas é natural: quem aguenta reuniões intermináveis de Câmara a discutir com Assunção Cristas, aguenta tudo.
A primeira imagem do documentário é um plano de Tony ao espelho a fumar um cigarro, minutos antes de entrar em palco. Ora aqui está a primeira surpresa da noite: “o Tony fuma, não fazia ideia”, pensei para mim. No final do documentário percebi que o Tony não fuma, o Tony é uma chaminé. Ao longo do documentário o Tony produziu mais fumo que a central termoelétrica de Sines. Percebe-se que o cigarro, mais do que um vício, é um escape para apaziguar algum nervosismo que o próprio assume ainda manter, apesar dos mais de 30 anos de carreira.
É esse Tony, sem filtros (tirando os dos cigarros), visivelmente ansioso mas totalmente focado, que aparece na primeira cena e que dá o mote para todo o documentário. Naquele momento a sala de cinema transformou-se no camarim da Altice Arena e é impossível não sentir a adrenalina gerada por uma melodia abafada de milhares de vozes que, lá ao fundo, gritam em conjunto: “Tony, Tony, Tony”. Neste momento, eu e a Cinha ficámos algo apreensivos porque afinal o pacote de pipocas poderia ser pequeno demais para a emoção que se perspetivava adiante. E não estávamos de todo errados.
O documentário segue os parâmetros de sucesso das produções atuais — de resto não deixa de ser um conteúdo comercial e muito comerciável, obviamente. Ao longo dos cerca de 120 minutos do filme, encontramos momentos de humor, muitas vezes como comic reliefs para atenuar outras cenas mais dramáticas ou comovedoras, alguma polémica (na abordagem às acusações de plágio) mas acima de tudo uma dose grande de melancolia. A primeira frase que Tony diz define bem este tom que é constante do início ao fim: “Estou num momento em que não sei bem quem sou”. Uma frase que poderia ser facilmente atribuída a qualquer um dos membros dos Rolling Stones, atendendo ao seu histórico e ao facto de serem idosos, mas dita por Tony soa a algo que não encaixa com o perfil público que conhecemos do artista e que é dado a revelar mais a fundo, através deste documentário.
A fábrica de salsichas
Pode parecer estranho mas a carreira e o sucesso de Tony Carreira devem-se, em parte, a um chinês que o ensinou a tocar guitarra e, suspeito eu, os segredos para confecionar um prato de “família feliz”. Já a viver em França, com as gorjetas que ganhava, Tony conseguiu pagar aulas de guitarra duas vezes por semana e a partir daí nunca mais pôs de parte o desejo de um dia, vir a viver exclusivamente da música. O primeiro projeto musical em que participou foi o conjunto Irmãos 5, onde apenas tocava guitarra. O vocalista era o João, mas como explica Tony, “o João não cantava nada”. João contrapõe, algo desgostoso, que o problema “eram umas minis fresquinhas” que bebia no final dos concertos e que lhe deram cabo de uma corda vocal. É inevitável olhar para este homem, careca, com tom nostálgico, sentado ao lado da sua mulher de ar carrancudo e não pensar que aquela podia ser perfeitamente a versão falhada de Tony Carreira, se não tivesse tido a sorte (ou será que foi o destino?) de seguir o seu caminho a solo, com a crença de que era possível tornar real o seu sonho de menino. Mas desengane-se quem pensa que este percurso foi um mar de rosas, longe disso. Tal como todos os membros da sua família que emigraram para uma aldeia a poucos quilómetros de Paris, Tony teve de empregar-se numa fábrica de salsichas onde trabalhou durante dez anos, que, segundo desabafa, “pareceram trinta”.
Está visto que foi aí que Tony começou a fumar desalmadamente, para poder fazer algumas pausas entre o enchimento de uma “bratwurst” e uma “montbéliard”. Durante este período, em 1988, Tony — nessa época apresentando-se ainda como António Antunes — concorreu ao Festival da Canção. Ficou em penúltimo lugar e o fracasso deitou por terra a esperança que tinha de poder dizer adeus à fábrica. Mas este episódio não o fez desistir e, aliás, é espantoso perceber que é este “medo” de ter de voltar para uma vida rotineira sem propósito aparente, que lhe dá o estímulo necessário para esforçar-se e fazer crescer a sua carreira artística. Mais do que ser famoso, Tony acima de tudo só não quer voltar para a fábrica.
Este documentário acaba por ser, inevitavelmente, uma homenagem a todos os emigrantes que tal como os pais de Tony, sentiram-se obrigados a sair de Portugal para procurar uma vida melhor. No sucesso de Tony conseguimos também ver refletido o esforço, a dedicação, as angústias, as saudades de milhares de famílias que deixaram a sua terra em nome de um ideal, mas que nunca esqueceram a origem. Este é um dos aspetos mais vincados ao longo do filme, com uma presença recorrente e bastante divertida diga-se, do irmão de Tony, José Antunes — embora algo mais reservada no que toca às figuras dos pais e dos filhos Mickael, David e Sara, que surgem apenas a atuar com o pai. Provavelmente perguntaram para que eram as filmagens e quando lhes explicaram que não eram para o YouTube, os filhos não mostraram grande interesse.
“Liga, liga quando quiseres… se estiver a fazer o amor eu paro.”
À parte da família, o principal aspeto em que Jorge Pelicano se foca é todo o universo artístico do cantor, com destaque óbvio para o verdadeiro fenómeno que é o seu séquito de admiradores, que muitas vezes chega a manifestar traços de culto religioso. Aqui ficamos não só a perceber a dedicação profunda dos fãs ao seu ídolo, mas também a enorme e genuína disponibilidade que Tony tem para aqueles a quem, como diz, deve tudo. E eles são muitos, têm cartazes e T-shirts, sabem as letras todas de cor e deslocam-se em autocarros cheios, sempre que o artista tem um concerto de maior dimensão, como aconteceu nos espetáculos do Coliseu dos Recreios, ou na Altice Arena, retratados neste documentário como pontos de viragem na carreira do artista e essenciais para o seu reconhecimento como um dos artistas de topo em Portugal.