Opinião
À procura do pior filme de sempre: “Manos — As mãos do destino”
Há alguns anos havia um site chamado "Videogum" que tinha uma rubrica chamada "The Hunt For The Worst Movie Of All Time". Quando o site acabou essa série de artigos caiu no esquecimento. Esta é a minha homenagem.
Este senhor é o Mestre, também conhecido como "o mau"
Como forma de homenagem, decidi aproveitar este espaço para continuar a demanda masoquista de encontrar o pior filme de sempre, naquilo a que vou chamar, surpresa das surpresas, “À Procura do Pior Filme de Sempre”. Ao contrário da coluna original do “Videogum” não me quero basear só em filmes modernos. Vou assim dar o corpo ao manifesto e ver os clássicos, os candidatos do costume e talvez alguns filmes inesperados. Desejem-me sorte.
Antes de mais, é importante definir o que é um mau filme, porque há vários tipos de mau. Vou tentar catalogar alguns: o Mau Subjectivo, que depende de quem o vê, uma espécie de física quântica manifestada em cinema que se concretiza conforme a atitude do espectador. Como exemplo disto vou dar o “Crash – Colisão”, que considero um filme insuportável, mas que é apreciado por muita gente.
Há o Mau Normal, que é o tipo de filme sobre o qual já ninguém quer falar, como o “Speed 2: Perigo a Bordo”, que só provoca arrependimento em quem investiu 125 minutos a vê-lo.
Mais memorável é o Mau Terrível, como o “Batman e Robin” de Joel Schumacher, um dos maiores desperdícios de dinheiro que já se viu na civilização moderna, um saco de lixo que custou 125 milhões de dólares.
Há também o Mau Feito Para Ser Mau, como os filmes da produtora Asylum, responsável por filmes como “O Ataque do Tubarão de Duas Cabeças” e “Titanic 2”. E, por último, o melhor tipo de mau: o Mau Genuíno. E este é o Santo Graal da mediocridade, um tipo de filme que tem algo de único e irrepetível na forma de ser mau, uma inocência que o demarca de lixo ocasionalmente divertido como o “Piranhaconda”, do canal Syfy.
Estes maus genuínos são os que se transformam em filmes de culto e que esgotam sessões de cinema anos depois de serem lançados. Para primeiro filme desta rubrica escolhi um destes, uma obra com a honra duvidosa de ter 1.9 no imdb.com, chamado “Manos: The Hands of Fate”. Que se traduz, de forma redundante, para “Manos: as Mãos do Destino”.
E que início foi este. O “Manos” é de facto um dos piores filmes que já vi, apesar de não ter sido um completo desperdício de tempo. Aliás, o filme continuou a entreter-me bem depois de o ter visto, assim que comecei a pesquisar mais sobre o assunto.
Tudo começou com um café entre Sterling Silliphant, argumentista galardoado com um Óscar pelo filme “No Calor da Noite”, e um vendedor de seguros (e de fertilizantes) chamado Harold Warren. Durante a conversa, Harold, um apaixonado por teatro, insistiu que era muito fácil fazer filmes de terror. O respeitado argumentista, naturalmente, discordou. Então, para resolver a questão, fizeram uma aposta que resultou em “Manos”. Harold escrevinhou o argumento num guardanapo, convenceu a família e amigos a apoiarem o projecto (foram eles as verdadeiras vítimas desta história), e partiu para a produção com 19.000 dólares e uma câmara que não gravava mais de 32 segundos seguidos. Recrutou um par de actores de teatro, mais algumas modelos, e foi para uma casa num descampado no Texas, munido de zero experiência e valores negativos de talento.
“Manos: As Mãos do Destino” começa com uma família em viagem. Temos o casal Margaret e Michael (interpretado pelo realizador, Harold Warren), a filha pequena, Debbie, e o seu cão. Juntos vão pela estrada fora, rumo a algo que não é especificado. E durante dez minutos o filme é isso. Eles simplesmente conduzem e conduzem. Uns polícias mandam-nos parar, mas nada acontece. Continuam a conduzir. Passam por um casal aos beijos. E depois conduzem mais. Conduzem durante muito, muito tempo.
O “Manos” começa a revelar-se nesse início. Os primeiros dez minutos consistem numa sucessão interminável de planos de 32 segundos da estrada, que deram para pensar muito no que estava a fazer à minha vida e debater-me com os prós e contras de fazer fast forward. Resisti e fui recompensado com a chegada da família a uma casa no meio de nenhures, onde são recebidos por um homem chamado Torgo (John Reynolds), uma espécie de campónio que se movimenta e fala de uma forma muito particular.
Segundo os outros actores, Reynolds estaria sob o efeito de LSD durante as filmagens, o que pode ajudar a explicar algumas coisas. Consta também que a intenção original de Harold Warren era que a personagem de Torgo se assemelhasse à figura mitológica do fauno. Não foi o que aconteceu, até porque Reynolds não usou a prótese feita de cabides e espuma como era suposto: em vez de ficar com “pernas de bode”, o ator colocou a prótese ao contrário e ficou com joelhos de tamanho XXL. Como ninguém o corrigiu, assim ficou durante toda a produção.
Note-se os joelhos XXL que ninguém quis reparar
Depois de um diálogo que envergonharia David Lynch pelo surrealismo involuntário, Michael exige dormir na casa, por já ser tarde para seguir caminho (apesar de ser óbvio que não passa das três da tarde). Torgo parece dividido, mas lá aceita o pedido. Ele ainda menciona um Mestre misterioso e lembra-os, duas vezes na mesma frase, que não dá para sair dali.
A família entra então na casa — composta por dois cenários, sala e quarto — e ficam especados a olhar para uma pintura de um homem de bigode com um doberman. Esta cena, que parece nunca mais acabar, é interrompida inexplicavelmente pelo cão, que faz aquele truque giro de se equilibrar nas patas de trás. Os atores esquecem que é suposto estarem aterrorizados e riem-se para o bicho antes de continuarem a cena. É a única hipótese que o cão tem para brilhar, porque pouco depois ele depois foge da casa e aparece morto. A família tenta então ir-se embora, mas o carro não pega. Enquanto Michael abre o capot do carro e toca aleatoriamente na superfície do motor, na esperança de parecer que o está a tentar arranjar, Torgo tenta seduzir Margaret tocando-lhe no cabelo. É pior do que soa.
Torgo, o mau da fita
No final desta cena memorável vemos pela primeira vez o Mestre, que parece um contabilista satânico de bigode, juntamente com as suas esposas vestidas de branco. Segue-se uma série de cenas terríveis passadas de noite, onde percebemos mais um problema do Manos: as luzes de exterior atraíram uma praga de insectos pior que Armação de Pêra em 2013.
Os Maus Genuínos são os que se transformam em filmes de culto anos depois de terem estreado
O Mestre, desagradado com Torgo, decreta a sua morte e incendeia-lhe a mão direita (porque o filme se chama “Manos”, sim). Torgo, já sem mão, foge desesperado para longe do Mestre, dos insectos, do filme e quiçá da sua carreira. Entretanto, a família consegue fugir de casa, mas estão constantemente a cair enquanto correm, sem razão aparente. Depois de três quedas ridículas, decidem voltar para a casa, porque, como Michael anuncia, é o lugar onde ninguém se vai lembrar de os procurar. Assim que entram, o Mestre encontra-os. Michael dispara um tiro à queima-roupa, que não surte efeito sobre o Mestre, e a cena acaba com este a olhar para a família de forma ameaçadora, num plano absurdamente desfocado. No dia seguinte, aparece um carro com duas raparigas e desta vez é Michael quem as recebe, o novo Torgo lá do sítio. Fim.
O “Manos” teve estreia em 1966, em El Paso, Texas, onde também foi filmado. O realizador alugou uma limusine para levar os atores, que teve de fazer duas viagens porque não cabiam todos, na esperança de tornar a experiência mais hollywoodesca. Durante a sessão, houve várias reacções. A maior parte dos atores escapou-se sorrateiramente, enquanto que uma das atrizes chorou a rir com o filme. Já a menina que interpretou a filha do casal, essa chorou de desilusão quando percebeu que lhe tinham dobrado as poucas falas que tinha, uma das vezes por um homem a imitar a voz de uma criança. Não foi uma questão pessoal, porque na verdade todo o filme foi dobrado só por três pessoas, o que torna a ocasional repetição de diálogos ainda mais bizarra e inexplicável. É esse tipo de bizarria tão particular que faz de Manos um forte candidato a Pior Filme de Sempre, mais do que a óbvia ineptidão técnica e narrativa de Harold Warren e dos seus atores.
Para ser justo, não foi uma experiência que me tivesse custado muito. Porque o “Manos” até tem umas pequenas qualidades que podem afetar na votação final para Pior Filme, como a estética dos anos 60 que lhe dá um certo encanto, e o facto de só durar 70 minutos. Afinal, não se pode ser mau em tudo.