Digam o que disserem, John Carpenter é o maior
O nome do realizador americano transformou-se num adjetivo. E isso, é extraordinário.
Nenhum realizador se magoou decorrer destas filmagens.
Já estavamos em 2014 quando a revista Entertainment Weekly elegeu John Carpenter como o realizador mais influente desse ano. Uma escolha provocatória, se repararmos que Carpenter só realizou dois filmes no século XXI, “Fantasmas de Marte” (2001) e “O Hospício” (2010), obras menores na sua filmografia. Então, afinal, o que justificou a escolha?
A resposta é simples, mas irónica: de quase-ostracizado em Hollywood, John Carpenter passou a ser referência para toda uma geração de cineastas. Confesso que poucas coisas me deram tanto gozo nesta última década como o reconhecimento tardio de John Carpenter como um dos grandes realizadores. Depois de duas décadas de esquecimento — sempre se falou nos seus filmes mais importantes, mas não do autor — Carpenter ganhou uma das maiores honras que um artista pode ter: fez-se do seu nome adjetivo. O que adveio de uma necessidade prática, é tão comum encontrar hoje referências ao seu trabalho, em filmes e em música, que precisamos de uma palavra para definir essa essência. Demasiado próximo do cinema de terror para ser respeitado, demasiado teimoso para comprometer a sua visão, John Carpenter fez carreira como outsider no cinema. E agora, passado tanto tempo, a cultura pop está finalmente a descobri-lo.
John Carpenter começou como promessa maior de Hollywood, tendo em conta que a sua primeira curta-metragem, “A Ressurreição de Broncho Billy“, ganhou o Óscar na sua categoria e foi o primeiro trabalho académico a merecer um lançamento no circuito comercial norte-americano. Nunca dado a desperdícios, aproveitou depois mais um dos seus trabalhos de curso para servir de primeira longa-metragem. “Estrela Negra” saiu em 1974 e não representa muito mais que uma curiosidade na carreira do realizador. Teve, no entanto, impacto incidental na história do cinema: foi produzido a meias com Dan O’Bannon, que viria a criar “Alien“. Além de ser um dos atores, O’Bannon foi também responsável pela edição e efeitos especiais no filme. Fez tão bom uso de “lixo” para os cenários low-cost que mereceu a atenção de Jodorowsky, que o chamou (ou invocou?) para o seu mítico projeto “Dune“. John Carpenter, por sua vez, arrancou para o seu segundo filme, aclamado como uma das melhores obras independentes da altura. O “Assalto à 13.ª Esquadra” destaca-se pelo negrume asfixiante que permeia o filme, amplificado pela banda sonora eletrónica composta pelo realizador. É um bom filme que presta uma homenagem criativa a “Rio Bravo” (1959), e que que demonstra já uma das suas principais linhas orientadoras: baixo orçamento mas controlo criativo absoluto.
Em 1978, John Carpenter praticamente inventou as convenções do cinema de terror moderno com um filme onde, curiosamente, não aparece sangue. “Halloween – O Regresso do Mal” é a sua primeira obra-prima, uma das jóias da coroa do género, onde Carpenter reinventa as suas influências num estilo indiscutivelmente próprio. Filmado em Panavision, o filme tem aspeto de blockbuster, apesar de ter sido feito só com 286 mil euros. O uso dos planos sequência com o sistema Panaglide – uma espécie de concorrente da Steadycam – pelos subúrbios americanos tornou-se imagem de marca. Mas o que distingue “Halloween – O Regresso do Mal” é a elegância genial do argumento e da realização, uma masterclass de John Carpenter. E a inesquecível banda sonora, claro. O filme continua a ser um dos maiores sucessos independentes de sempre e marca o momento onde o realizador passou a assinar os seus filmes. A partir daqui, todos os títulos passaram a ter o prefixo “John Carpenter’s”.
O mais curioso é que tanto o “Assalto à 13ª Esquadra” como “Halloween” foram apenas o início daquilo que pode ser descrito como uma volta perfeita.
Continuou com dois telefilmes pouco relevantes (“
Elvis” e “
Alguém anda a Espiar-me“) antes de se atirar a uma clássica história de fantasmas em “
O Nevoeiro“, passando pelo seminal “
Nova Iorque 1997“, onde
Kurt Russell reinventa o arquétipo do anti-herói com a personagem Snake Plissken, até ao filme que é hoje considerado como a sua grande obra e um dos melhores filmes de terror de sempre. Falo, claro, do desastre de bilheteira que foi “
The Thing — Veio do Outro Mundo“, um ensaio sobre paranóia e isolamento que já teve direito a prequela, videojogos, livros de banda desenhada e agora um jogo de tabuleiro. Há muito a dizer sobre “The Thing – Veio do Outro Mundo”, um remake do original de Howard Hawks, um herói de Carpenter, mas isso daria mais uma crónica à parte; se não o viram ainda, aproveitem uma noite fria para o fazer, tal como o fazem anualmente na base Amudsen-Scott, no Pólo Sul. No ano a seguir, ainda abalado pelo choque de ter sido incompreendido pela primeira vez na sua carreira, John Carpenter aceitou realizar um projeto mais seguro, baseado num livro do escritor popular Stephen King, “
Christine – O Carro Assassino“. É talvez a obra mais subvalorizada (e dramática) do realizador, uma pérola de realização complementada por uma das suas melhores bandas sonoras e por uma magnífica interpretação de Keith Gordon, que viria a tornar-se realizador de séries como Dexter e Fargo.
Os oitentas continuaram a ser terreno fértil para Carpenter, que se redimiu finalmente do fracasso de “The Thing – Veio do Outro Mundo” com o simpático “Starman – o Homem das Estrelas” (1984), que valeu uma nomeação para Óscar de Melhor Ator a Jeff Bridges. Em 1986, John Carpenter perdeu um pouco a cabeça e decidiu fazer um filme onde prestava homenagem a todas as suas influências, uma salada russa de ação, western, fantasia e comédia chamada “As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim“, onde Kurt Russell destrói completamente o tal arquétipo de anti-herói, fazendo da personagem Jack Burton um gabarolas corajoso, mas completamente incompetente. Apesar de estar a escrever este texto ao lado de um poster do dito, é com total imparcialidade que vos digo que “As Aventuras de Jack Burton nas Garras do Mandarim” é um grande filme. Depois deste, John Carpenter voltou ao cinema de terror puro com “Príncipe das Trevas“, feito com baixo orçamento mas usando um argumento com momentos fabulosos (as sequências do sonho recorrente são arrepiantes). E, por último, um filme que parece estar em todo o lado nestes dias: o interessante “Eles Vivem“, o argumento mais político de John Carpenter, onde através de uma simples alegoria (invasão extra-terrestre), o realizador denuncia o consumismo e conformismo da América de Reagan. O “Eles Vivem”, apesar de ser menos bom que muitos filmes desta “volta perfeita” (o final é terrível, tenham paciência), parece fazer ainda mais sentido na nossa cultura do século XXI, e é um dos grandes responsáveis pelo ressurgimento de Carpenter. Foi com “Eles Vivem” que acabou a volta perfeita do realizador norte-americano: dez filmes em doze anos seguidos, que vão do muito bom ao brilhante. O que veio para a frente, tirando honrosas exceções (“A Bíblia de Satanás“, sobretudo), foram filmes inferiores, mas que não denigrem uma filmografia assustadoramente constante.
John Carpenter parece estar em todo o lado hoje em dia, mas parece ter-se reformado da vida de cineasta. “É muito trabalho”, costuma dizer, desencantado com tudo o que implica a produção de um filme, com os estúdios, com o grande público que só agora o aprecia devidamente. Mas há também uma nova alegria por detrás da clássica inexpressão de Carpenter, que se dedicou nos últimos anos a explorar a sua veia musical a meias com o seu filho. E isso vem da validação a posteriori da sua visão de realizador, argumentista e compositor, que lhe deve saber bem depois de uma carreira inteira a correr por fora. Claro que a qualidade dos filmes também se deve à equipa que o acompanhou, pessoas como os produtores Debra Hill e Larry Franco, o genial diretor de fotografia Dean Cundey, Alan Howarth, com quem compôs algumas das suas melhores bandas sonoras, e os excelentes atores que deram vida às suas criações, como Harry Dean Stanton, Kurt Russell, Dennis Dun, Donald Pleasence, Adrienne Barbeau e Jamie Lee Curtis.
Mas verdade seja dita, assim como o prefixo dos filmes sempre foi “John Carpenter’s”, também este momento de glória deve ser sua propriedade. Como o próprio diz num documentário, “Quero que alguém no futuro veja estes filmes e se aperceba que são meus. Podem não gostar dos filmes e achar que não prestam, mas são os meus filmes”. A César o que é de César: John Carpenter é o maior.