Um grupo de manifestantes encheu as ruas de Boston e marchou até ao senado do estado de Massachusetts com uma mensagem: estava na hora de parar os investidores que compravam meia cidade para a colocar no mercado do alojamento local e, particularmente, no Airbnb, a plataforma de aluguer de curta duração mais popular em todo o mundo. À medida que estes investidores tomavam conta da cidade, famílias eram forçadas a mudar-se para os subúrbios. Os que ficavam tinham que enfrentar rendas com valores absurdos. A cidade decidiu agir e regular a situação.
A nova lei pretendia desencorajar o recurso a este aluguer e impedir a criação de pequenos hotéis em prédios só com alojamentos locais. Fazia-o através da exigência de um registo dos proprietários, exigindo também que só poderiam estar publicadas na plataforma as habitações principais de quem as aluga.
Dois meses antes de a legislação ir a votos, os proprietários que tinham as suas casas na plataforma começaram a receber emails da Airbnb. Neles, a empresa atacava diretamente Michelle Wu, uma das vereadoras responsáveis pela proposta, acusando-a de estar ao serviço dos interesses dos grandes hotéis, entre outras críticas que se vieram a provar infundadas. A lei passou e dois meses depois, o Airbnb avançava com um processo em tribunal contra a cidade.
“A Airbnb descreve-se como um pequeno serviço de partilha de casas, mas a realidade é que hoje é uma empresa que faz milhões de dólares graças a negócios que tiram partido de lacunas da lei e que gerem autênticos hotéis”
“A Airbnb descreve-se como um pequeno serviço de partilha de casas, mas a realidade é que hoje é uma empresa que faz milhões de dólares graças a negócios que tiram partido de lacunas da lei e que gerem autênticos hotéis”, explica Wu em entrevista à “Wired”.
Ao fim de vários anos de uma vaga imparável de turismo que fez crescer quase do zero o mercado do alojamento local em Portugal, surgem os primeiros indícios de que esta guerra poderá alastrar-se às ruas de Lisboa e Porto. Num artigo de opinião publicado no “The Independent”, o presidente da Câmara de Lisboa Fernando Medina sublinha que esta fama obrigou os lisboetas a “pagar um preço social”.
“Trabalhadores de áreas essenciais e as suas famílias têm sido afastadas da cidade à medida que os alugueres de férias à moda do Airbnb tomaram conta de um terço das propriedades do centro de Lisboa, inflacionando preços, esvaziando comunidades e ameaçando o seu caráter único”, escreve.
O plano, assegura o próprio, passa por criar alojamento a custos comportáveis, oferecendo-se para “pagar aos senhorios”, para que transformem estas casas de aluguer de curta duração em casas de rendas mais baixas para estes trabalhadores.
Criada em 2008 por três estudantes, a startup modesta cresceu e é hoje um colosso do mercado do arrendamento. Estima-se que esteja presente em mais de 191 países e tenha mais de seis milhões de propriedades listadas. Antes da pandemia, preparava-se para a sua oferta pública inicial, entrando em bolsa com uma provável avaliação acima dos 30 mil milhões de euros — o que faria dela a segunda startup mais valiosa dos Estados Unidos, apenas atrás da Uber.
A pandemia travou o plano e mergulhou a empresa numa crise. Porém, os problemas haviam começado alguns anos antes. Desde a sua criação, a Airbnb interpôs pelo menos onze ações judiciais só nos Estados Unidos, que visavam cidades ou governos estaduais. A maioria deles entraram nos tribunais nos últimos dois anos — período em que muitas cidades começaram a tomar noção das ramificações perversas que o novo modelo implementou nas cidades. E o “preço social” de que Medina falava e que os locais tiveram que pagar do seu próprio bolso.
A luta tem sido feroz, mas há algo que a maioria dos legisladores, políticos e autarcas rapidamente perceberam: o Airbnb é um adversário temível. E recursos não lhes faltam.
Táticas de guerra
Nova Orleães tinha dois problemas: queria saber quem eram os proprietários das casas listadas na plataforma; e pretendia pôr um travão à criação de autênticos bairros onde ninguém morava e todas as casas serviam de alojamento local. Em dezembro de 2016, sentou-se à mesa com a Airbnb e assinou um acordo inédito, que seria replicado em muitas outras cidades. Nele, a plataforma aceitava partilhar nomes dos proprietários para os registar automaticamente junto da autarquia. O acordo fracassou, como fracassariam a maioria dos que o sucederam noutras localidades.
Se em 2015 havia mais de 1.700 casas inscritas no Airbnb, o número quase quadruplicou em três anos. Em 2018 estimava-se que fossem mais de 4.300. Só uma empresa detinha pelo menos 197 licenças, que correspondiam a 80 por cento do seu negócio. 11 por cento dos proprietários controlavam 42 por cento das casas. “Essa é uma história muito diferente daquela do negócio caseiro que a Airbnb costuma usar para descrever os anfitriões”, revela à “Wired”.
Os dados prometidos pela Airbnb eram escassos e insuficientes. A Câmara Municipal decidiu agir e congelou todos os novos registos de alojamento local por nove meses. Nem um mês passou sem resposta: a plataforma desmantelou de imediato o sistema de registo que se tinha comprometido a montar e que destruiu o trabalho de um ano dos oficiais camarários.
A retaliação não assume sempre a mesma forma, mas é quase sempre inevitável, como puderam comprovar os autarcas de San Diego, na Califórnia. Também eles assinaram um acordo que se veio a mostrar insuficiente. Nesse período entre 2015 e 2019, o número de casas inscritas disparou de 2.600 para 11.500. Muitas delas estão nas mãos de investidores que se dedicam a estes aluguer como profissão a tempo inteiro. Os sintomas apresentados foram os que se previam: bairros transformados em hotéis e uma escassez de casas para famílias e alugueres de longa duração.
Tal como em Nova Orleães, a autarquia passou à ação, ignorou o acordo e ilegalizou o aluguer de curta duração de propriedades que não sejam a residência principal do anfitrião. A resposta não chegou aos tribunais, mas às ruas.
Os milhões da Airbnb foram reconduzidos para um grupo de lóbi político, que rapidamente juntou mais de 60 mil assinaturas a pedir um referendo para combater a legislação aprovada. A Câmara Municipal cedeu e levantou a proibição.
“É desapontante ver uma empresa avaliada em 31 mil milhões de dólares chegar à nossa cidade com a sua conta recheada e usá-la nestas táticas enganosas”
“É desapontante ver uma empresa avaliada em 31 mil milhões de dólares chegar à nossa cidade com a sua conta recheada e usá-la nestas táticas enganosas para nos obrigar a chegar a este ponto”, confessou a vereadora Barbara Bry numa reunião.
Não é fácil combater uma empresa multimilionária com aparentes recursos infinitos. A sua equipa de advogados pode chegar a juntar 120 pessoas, abastecidas com um orçamento que em 2018 chegou aos 60 milhões de euros, revela a “Bloomberg”, que cita uma fonte conhecedora do funcionamento da empresa.
Algumas táticas são menos espalhafatosas do que outras. Segundo um especialista, no final de 2016 a empresa mudou a forma como exibia a informação dos anfitriões, para a esconder das autoridades. Essa informação era essencial para que fosse possível identificar proprietários, verificar a legalidade ou ilegalidade dos alojamentos e aplicar a cobrança de taxas.
“A Airbnb está a fazer uma guerra de guerrilha, de cidade em cidade, de bairro em bairro, conta os governos locais”
“É um jogo do gato e do rato. Eles literalmente colocavam o pin de localização da casa no sítio errado”, revela Ulrik Binzer, CEO de uma empresa que ajuda a criar legislação para regular os alugueres de curta duração.
Embora a empresa diga estar a proteger os dados privados dos anfitriões, a verdade é que dificulta a vida das autoridades no controlo e regulação deste mercado. “A Airbnb está a fazer uma guerra de guerrilha, de cidade em cidade, de bairro em bairro, conta os governos locais. Eles têm que lutar cada uma destas batalhas como se fosse a mais importante das suas vidas”, nota Binzer.
O contra-ataque
As autarquias não se fizeram de mortas. Perante o emergente problema que alastrava pelos centros históricos das suas cidades, reuniram os advogados e lançaram-se em batalhas judiciais, onde alegavam que a plataforma partilhava alojamentos ilegais e que se evadia ao pagamento das taxas turísticas.
“A Airbnb vai enfrentar estas lutas regulatórias por todo o mundo durante a próxima década”, explica à “Bloomberg” Aswath Damodaran, professor de gestão da Universidade de Nova Iorque. Apesar das dificuldades, acredita que tudo será resolvido, embora isso possa diminuir a avaliação da empresa em cerca de 10 por cento. A proximidade da entrada em bolsa é, também, um dos motivos pelos quais a Airbnb se tem mostrado tão hostil.
Do outro lado do Atlântico, na Europa, o final de 2019 trouxe uma enorme vitória à plataforma. França, que é o segundo maior mercado da Airbnb atrás apenas dos Estados Unidos, levou a empresa a tribunal, alegando que era injusto que estivesse isenta da legislação nacional.
A associação turística AhTop exigia que a Airbnb fosse considerada um agente imobiliário e, portanto, fosse forçada a pagar taxas como qualquer outro hotel, bem como a inspecionar se os anfitriões cumpriam todas as regras locais. A empresa defendeu-se apenas com um argumento: trata-se simplesmente de um serviço online que serve de ponte entre hóspede e anfitrião. O Tribunal de Justiça da União Europeia concordou.
De imediato, oito cidades europeias a braços com os efeitos nefastos do aluguer de curta duração lançaram um apelo à União Europeia. Paris, Bordéus, Amesterdão, Viena, Bruxelas, Berlim, Munique e Barcelona exigiram “novas diretivas na regulação do comércio eletrónico para garantir um desenvolvimento mais equilibrado das acomodações para turistas”.
A brecha na armadura
A cidade onde a empresa nasceu foi também a primeira a bater-lhe o pé com sucesso. Graças a uma lei que proibia os anfitriões de alugarem as casas para lá dos 90 dias por ano. A Airbnb processou e acabou por chegar a um acordo extrajudicial com São Francisco. Impedidos de listarem alojamentos ilegais, estima-se que tenha sido forçada a eliminar metade das nove mil casas partilhadas.
Algo semelhante aconteceu em Nova Iorque, onde em 2018 foi aprovada uma lei que proibia alugueres com duração inferior a 30 dias. A cidade foi mais longe e exigiu dados detalhados dos anfitriões para poder detetar os alojamentos ilegais — um processo que ainda não teve decisão final dos tribunais.
Muitas das batalhas jurídicas têm sido ganhas pelas autarquias, com alguns juízes a mostrarem-se bastante críticos do argumento de defesa da empresa, particularmente quando alega não ser responsável pelos conteúdos que os utilizadores colocam na plataforma. E explica que nem sequer tem que ser ela a fazer essa fiscalização.
“Ao permitir que as empresas online reclamem imunidade nestas circunstâncias, correríamos o risco de as ver isentarem-se da maioria da legislação local (…) [e ilibá-la da responsabilidade de eliminar os alojamentos ilegais] seria com criar uma terra sem lei na Internet”, declarou um juiz.
Portugal a meio gás
“Leiam os meus lábios: nós queremos pagar taxas”, dizia em 2016 Chris Legane, chefe do departamento de política pública da Airbnb. Ainda assim, a cobrança chegou a ser um dos princiais campos de batalha entre cidades e plataforma.
Até 2014, a política oficial da empresa era a de que o pagamento das taxas locais era uma obrigação que cabia aos anfitriões. Desde então, tem assinado acordos com centenas de cidades para agilizar o processo.
As taxas turísticas, aplicadas em Lisboa e Porto, são agora automaticamente cobradas aos hóspedes no momento da reserva — e depois entregues às autarquias. O processo é detalhado no site oficial da empresa. Em 2019, as duas maiores cidades nacionais receberam um total de 14,3 milhões de euros.
O que muitos destes acordos não contemplam é a comunicação que dados que permite identificar alojamentos locais sem licença. Em 2019, por exemplo, a ASAE instaurou 327 processos de contraordenação e 11 processos crimes a alojamentos locais e empreendimentos turísticos.
À medida que a guerra ganha força noutros países, em Portugal a batalha pelos centros históricos das cidades tem sido palco de avanços modestos, muito diferente da luta na lama a que se assiste lá fora. Isto apesar de Lisboa ter mais alojamentos locais por habitante do que grandes capitais europeias como Paris, Londres ou Roma — números de 2018 apontam para quase 18 mil registos. No Porto, o número supera os oito mil.
Desde o final de 2019 que Lisboa atualizou as áreas de contenção de novos registos de alojamento local. As zonas restritas aumentaram para seis, estando sob constante vigilância, para assegurar que o rácio não é ultrapassado.
O mesmo acontece no Porto desde o verão do ano passado, embora a crise no turismo provocada pela pandemia tenha levado a autarquia a suspender o impedimento de novos registos no centro histórico e na freguesia do Bonfim.
Outras medidas foram sendo avançadas ao longo dos últimos anos, numa tentativa de fazer abrandar o fenómeno. É, por exemplo, proibido que a mesma pessoa detenha e explore mais do que sete estabelecimentos numa área de contenção — e mais de nove ou 75 por cento das frações de um edifício.
A paz entre Airbnb e autarquias portuguesas esteve em risco durante algumas horas. No artigo publicado no “The Independent”, Medina ameaçava acabar com a plataforma na cidade. Corrigido o título e esclarecido o equívoco, o presidente afirmava então que queria transformar alguns dos alojamentos publicados na plataforma.
Tudo indica que o horizonte não reserva, pelo menos para já, um choque frontal. O programa Renda Segura, lançado em maio, tem 15 milhões de euros para arrendar estes alojamentos lisboetas, que depois serão novamente colocados no mercado com rendas acessíveis. O plano será aplicado durante os próximos cinco anos.