Decore este nome: Aheneah — ou Ana Martins, se for mais fácil. Num futuro não muito distante, vai andar por metrópoles mundiais ou por pequenas vilas do interior de Portugal, vai visitar exposições e mostras de arte urbana e reconhecer as incríveis e originais peças e murais, feitas de lã colorida espalhada por parafusos, criando caras, figuras, animais e recriando sentimentos. No fundo, é uma nova interpretação da arte do ponto cruz. E tudo nasceu da mente de uma jovem portuguesa, que só queria honrar e replicar o que viu a sua mãe, avó e bisavó fazerem.
Ana Luísa Mendes Martins é uma artista e designer gráfica de 22 anos natural de Vila Franca de Xira, onde ainda reside. Estudou primeiro na Escola Artística António Arroio, em Lisboa, tirando depois uma licenciatura em Design Gráfico na Esad das Caldas da Rainha, em 2014. Agora, é uma das finalistas do concurso New Talent, que resulta de uma parceria entre a NiT, TVI e Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que pretende encontrar o maior jovem talento português na área do lifestyle.
Quando tinha apenas 19 anos, Aheneah — o nome tem uma explicação mas já lá vamos — apresentou a sua primeira obra em público. Foi nessa altura, em 2016, que surgiu também o primeiro trabalho oficial: um mural com cerca de 2,5 metros de altura, 400 pregos e centenas de metros de fio. De um dia para o outro as pequenas cruzes de dois milímetros bordadas passaram a ser 20 vezes maiores e a ter como suporte não um pano mas uma parede, na Covilhã.
Desde então, Ana não tem parado. As encomendas acumulam-se e o futuro avizinha-se brilhante. Mas tudo isto, ou a génese disto, começou muitos anos antes.
“Eu cresci numa família com muitas mulheres, todas interessadas pelo têxtil. E faziam todas coisas diferentes, de tricots em pano a camisolas, cachecóis ou ponto cruz. Desde sempre que me lembro de ver a minha mãe, avós e bisavós a tricotar e a costurar, era o que fazia no meu tempo livre, observá-las; e desde cedo que pedi para me ensinarem”, conta à NiT.
Adorava observar e folhear livros sobre o tema e o bordado ficou como uma das suas grandes memórias de infância, mas não procurou logo aprofundar esta paixão. Teria uns oito anos quando tricotou o seu primeiro cachecol, mas só durante a sua licenciatura viria o contacto mais sério com a técnica de ponto cruz.
Pelo meio, meteu-se uma outra paixão: a da arte urbana. “Na adolescência comecei a interessar-me muito por arte urbana e grafitti. Foi até um pouco isso que me levou a escolher um curso artístico na António Arroio, porque em criança não dizia ou pensava escolher artes”.
Ana tinha amigos que faziam graffiti e ainda hoje fazem. Como estava integrada no meio, ficou fascinada com este poder: o de embelezar espaços vazios ou abandonados enquanto cria mensagens. Na António Arroio, em Lisboa, explorou esta paixão e descobriu uma outra vertente, a do design gráfico. “Percebi que conseguia responder a problemas ou questões com uma imagem e percebi que gostava de comunicar com imagens”.
Surgiu assim de forma natural a escolha da Licenciatura em Design Gráfico na Esad, nas Caldas. No último ano do curso a vida de Ana começou a mudar. “Foi lançado um desafio aos alunos: descobrir as suas raízes, memórias e usá-las num projeto. E foi aí que eu comecei a vasculhar e lembrei-me: por que não voltar às minhas memórias de infância? Pedi à minha avó livros ou algo para poder tirar referências do meu trabalho”.
A avó de Ana não lhe mostrou um livro, mas algo muito melhor: um pano que seria crucial na sua vida, ainda que super simples. Esse pano antigo tinha todas as letras do alfabeto em ponto cruz.
Foi ai que se deu o clique. “Olhei para o pano e comecei a pensar: letras, grafia, ponto cruz, design gráfico… Eu consigo criar um poster, mensagens com esta técnica — portanto, é aqui que eu vou pegar”.
Quando começou a explorar este estilo, rapidamente percebeu algo incrível: o ponto cruz funciona tecnicamente da mesma maneira que a unidade digital, que é o pixel. “Ou seja, as possibilidades eram infinitas: duas técnicas, dois meios vindos de mundos e de gerações tão diferentes cruzavam-se a certo ponto. E pensei que seria bom fazer essa ligação”.
Fez o tal trabalho pedido na faculdade — “um cartaz com um lettering cheio de efeitos de glitter” —, pegando num grafismo contemporâneo e ligado à área digital mas misturado-o com uma técnica e um saber ancestral.
O impacto junto de colegas e professores foi imenso. E imediato. “De repente estava tudo interessado nesta técnica descurada, que não despertava interesse a ninguém, e pensei que era por ali o caminho. Foi uma feliz descoberta, na verdade”, explica Ana.
Continuando rodeada de amigos com paixão pela arte urbana e num ambiente de faculdade nas Caldas da Rainha, começaram as suas primeiras experiências: “Passávamos os tempos livres numa fabrica abandonada a pintar, a experimentar e criar coisas novas. E algum tempo depois desse cartaz comecei a experimentar coisas em madeira e basicamente o ponto cruz começou a crescer, mesmo fisicamente. E eu gostei muito disso”.
Ana pensou em passá-lo para uma escala muito maior, mas foi uma incrível coincidência que lhe permitiu chegar onde hoje está. “Na altura eu pensei em aumentar a escala com os pregos e a lã. E eu hoje sei que, dentro dessa fabrica, nas suas variadas paredes, apenas três delas permitem pregos — todas as outras têm metal por detrás. Mas eu não sabia disso, na altura. Se eu tivesse tentado pregar numa delas, na maioria delas, não tinha dado e provavelmente tinha pensado ‘ok isto é tudo uma parvoíce, não vai resultar’, e desistido”. Por sorte, Ana testou os pregos numa das três paredes livres de metal; resultou e desde então não parou.
Pouco tempo depois Ana Martins começou a explorar e a mexer-se; a rodear-se de pessoas do mundo da arte urbana e plástica, associações, movimentos, a contactar pessoas, plataformas de intervenção artística.
Foi assim que conheceu a Mistaker Maker, responsável por algumas da primeiras parcerias e convites. Desde então que tudo tem sido uma correria. O primeiro trabalho foi no projeto Wool na Covilhã, a tal peça que ainda pode ser vista e que é a sua primeira em ponto cruz e em grande escala. Chama-se Matriz e “é uma homenagem à minha bisavó Narcisa, que não só tricotou o meu primeiro casaco, mas também me ensinou a tricotar a minha primeira peça”. Fica na Casa dos Magistrados.
Desde então já expôs em vários locais, como as galerias Circus Network, no Porto; o Village Underground em Lisboa (num dos contentores, que também ainda pode ver); ou o Who Let The Dogs Out, no Porto; a ESTAU, em Estarreja; a Lola Mullen Lowe, em Lisboa; ou Letters Are What Matters, nas Caldas da Rainha; em Oliveira de Azeméis, ou Figueiró dos Vinhos.
Em 2018, voltou a casa, Vila Franca de Xira, a uma rua perto da escola onde estudara em criança. Ali, na R. Fausto Nunes Dias, ainda hoje consegue ver Switch-Over, um mural que é especial para Ana — é uma ligação à sua infância mas também um símbolo do que mais gosta nesta arte.
“Eu costumo dizer que a arte urbana deve ser efémera. Nada dura para sempre, mas isto não quer dizer que se tenha de retirar, apenas que muda. E acho incrível acompanhar as mudanças e a evolução naquele mural: na cor da lã que se degrada, ou porque os miúdos puxam um fio quando passam”.
Com mais de 700 metros de lã, 2300 parafusos e o apoio da Junta de Freguesia, a peça que homenageia a infância foi instalada por Ana, com o apoio da oficina e funcionários da câmara. E é aqui, no processo de instalação, que reside um dos seus pontos fortes.
“Neste momento já tenho pessoas a ajudar-me pontualmente, mas o que ambiciono é o trabalho em comunidade. Em Baiona e em Figueiró foi a comunidade que ajudou a instalar a peça. Para mim, sem dúvida que é esse o caminho. Porque eu acabo por aprender imenso e inspiro-me com as pessoas. E elas sentem-se integradas no espaço, no projeto que no fundo é delas, que vão ver todos os dias”.
No meio de tudo isto, o interesse do estrangeiro e a internacionalização já começaram. Ana expôs em Santander, Espanha, em Baiona, França ou Blackburn, no Reino Unido. Pelo meio vão chegando mais convites de outros países.
A inspiração vem sempre do local onde expõe. “Só faz sentido se a peça for integrada no espaço, na cidade e na comunidade. Não invadir o espaço, mas contribuir para o espaço. Tento sempre ligar-me a um lado emocional, às pessoas, a memórias, às comunidades, mais do que qualquer outra coisa”.
É por isso que a técnica tem mudado, evoluído: “A primeira peça da Covilhã tem cinco cores, a última mais de 30.” Os recursos também mudam, cresce o interesse por usar lãs naturais e pela qualidade do material e a sua sustentabilidade. E há ainda outros pequenos-grandes detalhes. “Comecei com pregos que tinha de pôr um a um com um martelo e ia tendo uma tendinite. Já passei para parafusos; também estou a incluir a tecnologia na peça, já consegui criar peças semi animadas, como gifs; vou sempre tentando aperfeiçoar a técnica, aprender, seguir novos caminhos”.
Neste momento, Ana já se dedica a esta arte a 100%. Até porque tem projetos e encomendas que não acabam. Ainda assim, ela definiu muito bem o seu rumo. “Acho que não faz sentido comunicar sempre da mesma maneira. Sei que é difícil porque é suposto termos um universo visual ligado a um artista, mas eu tento fazer sempre uma finta, até para me manter criativa. Tento sempre aprender, mudar, experimentar, inovar”.
A jovem explica à NiT que não quer, por exemplo, ter sempre a mesma linguagem: só peças de animais, só letras, só rostos humanos. Cada uma é única. Da mesma maneira, também já é seletiva nos projetos que abraça.
“Quero ter a certeza de que sigo um caminho em que mantenho os meus ideais; sabendo que leva tempo, que para crescermos temos de dar tempo ao tempo, experimentar coisas novas e expor-me ao publico de uma forma cada vez mais madura. Ser seletiva porque nem sempre quantidade é qualidade. Fazer melhor antes de querer fazer mais”.
Se vencer a bolsa especial de 10 mil euros do New Talent, tem um plano incrível: levar a sua arte ao interior norte de Portugal, levar o ponto cruz para a sua casa num formato moderno e onde possa chamar a atenção para estas zonas, envolvendo as comunidades locais.
“Foi no interior e nas localidades mais pequenas que tudo começou. Apesar de estar esquecido, é o local onde reside o conhecimento das gerações mais antigas. Se ele for aliado a um olhar contemporâneo, continua a ser a chave para a valorização do património natural e cultural”.
Além disso, Ana gostava de fazer uma investigação profunda e documentada de todo o processo de produção e transformação da lã com foco nas necessidades das peças. Desde a composição e consistência do fio, à variedade de cores conseguida através do tingimento natural.
Quanto ao nome artístico, surgiu há largos anos por mera brincadeira com uma amiga. “Começámos a soletrar os nossos nomes, atribuindo uma junção de sons a letras e ficou Aheneah, que no fundo é o meu nome soletrado”. A primeira vez que expôs pediram-lhe um nome, uma assinatura. Ela lembrou-se desse e ficou. “Nem ser sequer foi muito pensado”.
No futuro, Aheneah, ou Ana, não esconde o orgulho em trazer uma técnica do passado para o presente, mas é ainda mais apaixonada quando fala nos locais, no poder da mensagem e sobretudo nas comunidades. “O que mais me motiva é sem dúvida o poder transformador que a arte urbana tem: nas pessoas, nos espaços, nas comunidades. E é sobretudo nisso que quero investir”.