Estávamos a 12 de março quando Gonçalo — nome fictício de um enfermeiro com 30 anos que falou com a NiT mas preferiu manter o anonimato — viajou para os Estados Unidos. Na altura, em Portugal, os restaurantes continuavam abertos, as escolas funcionavam e, apesar de alguma incerteza, a vida decorria de forma normal. Cinco dias depois, decidiu antecipar a viagem, uma vez que havia a possibilidade de ser declarado o estado de emergência no nosso País, como veio a acontecer no dia seguinte.
Chegou na terça-feira, ligou para a Linha SNS 24 e a resposta, que demorou dias a chegar, foi simples: tinha de ir trabalhar, apesar de ter viajado para um país que, na altura, tinha já cerca de sete mil infetados. Nada disto seria tão surpreendente se não se tratasse de um enfermeiro que tinha de se apresentar ao trabalho na segunda-feira, 23 de março.
“Fui atendido passadas duas horas e disseram que iam transferir a chamada para a linha de atendimento geral, mas caiu entretanto. Tentei mais uma chamada, que levou duas horas e 15 minutos, sem sucesso. Ainda enviei um email, mas nunca cheguei a obter resposta. A linha estava com imensos problemas e, a certa altura, completamente em baixo”, conta à NiT este enfermeiro de um Hospital de Lisboa e Vale do Tejo.
Apenas na sexta-feira, 20 de março, é que o enfermeiro conseguiu falar com alguém da Linha SNS 24. Explicou que tinha estado a viajar mas, naquela altura, a Direção-Geral da Saúde não tinha indicação de que os Estados Unidos eram uma zona de risco. Como também não apresentava sintomas, tinha de regressar ao trabalho sem fazer um teste à Covid-19 ou quarentena de 14 dias.
“O meu objetivo era fazer o teste, ou ter um período de quarentena, mas eles disseram não a tudo e, inclusivamente, que havia profissionais com sintomas a trabalhar, como se isso fosse alguma justificação”, revela.
Como tinha estado num outro país e passado por vários aeroportos, cruzando-se com pessoas vindas de outros locais do mundo, Gonçalo, que é enfermeiro há oito anos, sabia que havia risco de infeção. Foi trabalhar, sim, e por obrigação, mas muito revoltado.
“Há sempre ansiedade de estarmos contaminados e podermos estar a contaminar os outros”
“A sensação que deu é que a informação demora a chegar. Em Portugal, as medidas só são implementadas depois das coisas acontecerem, não se antecipam os problemas. A minha chefia apenas me disse para falar com a Linha SNS 24 para saber o que seria mais indicado”, recorda.
Não satisfeito com ambas as respostas, o enfermeiro telefonou para o seu seguro e os médicos prescreveram-lhe o teste. Nesse dia, ainda foi trabalhar da parte da manhã e à tarde realizou o teste. “Fui trabalhar sem saber se estava infetado ou não”, diz.
“Acabei por fazer o teste pela Multicare. Procurei os laboratórios que estavam a fazer os testes em Portugal e, no fim de semana antes de ir trabalhar, encontrei um que estava a começar a fazer em drive thru. Ainda só tinham feito no Porto e em Vila Nova de Gaia e iriam começar a fazer em Lisboa nessa segunda-feira, 23 de março.”
Gonçalo foi uma das primeiras pessoas a fazerem um teste sem sair do carro, em Lisboa, tendo mesmo lá ido no primeiro dia de funcionamento. “Quando cheguei parecia que ainda estavam a montar o circuito”.
“Tens de ter a tua documentação, ou seja, o cartão de cidadão e a requisição médica do teste, assim como o cartão de multibanco — o meu teste foi 100€ (valor de tabela), mas o seguro comparticipou totalmente. Também temos de ter o telemóvel connosco para falar com a pessoa junto ao posto, sem abrir a janela. Está lá um número de telefone, ligamos e dizemos se temos sintomas ou não, quais são, quando é que começam, se viajámos ou se estivemos em contacto com alguém infetado. No fundo, uma pequena triagem.”
O resultado chegaria em 48 horas, ou seja, na quarta-feira, 25 de março, e assim foi. A resposta chegou e deixou Gonçalo ainda mais assustado: “teste inconclusivo”, podia ler-se no resultado, ao qual a NiT teve acesso.
“Dizia que dois dos marcadores estavam positivos e o terceiro negativo. Fiquei assustado porque o próprio teste dizia que tinha de voltar a fazer outro. Entretanto, continuava a trabalhar, estava em contacto com doentes e colegas e, por mais que se use máscaras e lave as mãos, há sempre risco de contágio”, conta o enfermeiro.
Nessa altura, o hospital onde trabalhava não tinha nenhuma diretiva, pelo que continuou a seguir as recomendações da Linha SNS 24. O pior é que, apesar de o seu teste ter dado como inconclusivo e ter sido aconselhado a fazer outro, recebeu logo a prescrição por parte do seguro e não conseguia agendar a repetição.
“A partir dessa quarta-feira, os laboratórios começaram a fazer testes por indicação de pessoas que vinham do SNS 24, uma vez que o Serviço Nacional de Saúde ainda não tinha testes suficientes para dar resposta. Além disso, eram pessoas com sintomas. Por isso, eles começaram a cortar em testes que viessem prescritos de privados. Foi complicado mas, depois de muita insistência, abriram a exceção.”
Na segunda-feira seguinte, 30 de março, repetiu o teste no mesmo sítio e com o mesmo método.
“Foi uma semana e meia de suspense e muito medo. Há sempre ansiedade de estarmos contaminados e podermos estar a contaminar os outros. Felizmente, recebi o resultado e deu negativo. Consegui, finalmente, respirar de alívio. Mas sei de colegas que não tiveram o mesmo final.”
Os colegas infetados e os episódios arrepiantes com doentes
O enfermeiro recorda à NiT um caso: num dos serviços, uma das colegas, que também exerce noutra unidade hospitalar, não sabia que estava infetada e acabou a contagiar vários profissionais de saúde e doentes que estavam internados por outros motivos.
“A situação dela fez com que muitas pessoas fossem para casa de quarentena, obrigou à reestruturação de serviços e, consequentemente, à realização de mais turnos. Agora, tenho colegas que são mães de miúdos e bebés que são Covid positivas. Estão numa aflição porque não podem estar com filhos e têm medo de os infetar. É uma situação muito complicada. Estamos na linha da frente e os nossos familiares sofrem com isso”, diz à NiT.
“Falava até com uma delas no outro dia que me dizia que é difícil estar em isolamento em casa, já que os miúdos não percebem porque não podem abraçá-las nem dar beijinhos. É duro. O que me aconteceu é que tive sorte e elas não. Naquela altura, ainda estávamos largados à nossa sorte”.
É que quando o enfermeiro voltou ao trabalho, após a viagem aos Estados Unidos, ainda não havia diretrizes por parte dos hospitais. Relembra, até, que notou uma grande falta de materiais.
“Os hospitais não estavam preparados para lidar com isto. No dia a dia já há falta e quando regressei, a escassez era ainda maior. Não havia equipamento de proteção individual ou materiais mínimos para assegurar o contacto com os doentes Covid-19. Também notei que os próprios serviços não tinham protocolos para trabalhar com isso. Não estava nada organizado ainda. Parecia uma doença que ainda estava distante, quando agora está bem perto de nós.”
Agora, Gonçalo, que trabalha no serviço de cardiologia, garante que têm mais materiais e que há recomendações oficiais — a grande diferença para a semana de 23 de março. Usam bata impermeável, luvas e máscara FFP2.
“Há pisos dedicados a doentes com este vírus que estão a ficar lotados, o que significa que isto está a crescer e muito”
“Entrámos na fase de mitigação e tínhamos outras diretrizes: todos os utentes eram testados e só depois do resultado subiam para internamento. Muitas vezes, subiam na mesma, neste caso de cardiologia, e ficavam a aguardar o resultado dos testes já internados no serviço. Até correu bem no início porque todos os resultados vieram negativos. Ontem [2 de abril], no meu serviço, já subiram doentes que, afinal, estavam infetados. Ficas sempre a pensar se lavaste as mãos e se as levaste à cara”, descreve à NiT.
O enfermeiro refere que muitas pessoas são totalmente assintomáticas e que isso é assustador. “Gera uma ansiedade enorme o facto de não teres a certeza que tens contacto direto com alguém infetado.”
“A partir do momento em que tens contacto com alguém infetado é que percebes o perigo. Pode estar mesmo à tua frente e não vês. Temos também medo pelos nossos amigos e familiares. Não tenho contacto com ninguém desde que vim dos Estados Unidos, mesmo por prevenção, mas tenho medo de infetar a minha namorada, que vive comigo”.
O enfermeiro conta também à NiT um episódio que o chocou particularmente, que aconteceu no primeiro dia em que voltou ao trabalho.
“Já havia doentes internados com a Covid-19 e estavam no serviço de pneumologia. Nesse dia, até fiz transporte de um doente infetado. Pouco depois, ao entrar no piso, as portas estavam fechadas, o que não é comum, e na minha inocência entrei. Vejo, então, duas colegas minhas todas equipadas, a transportar um paciente morto. O segurança disse que não podia passar porque estavam a transportar uma pessoa infetada. Já não era uma realidade distante, estava a acontecer à minha frente. Foi aí que tive total noção de que estava mesmo a acontecer.”
À NiT avança que no hospital onde trabalha morreram cerca de seis pessoas por causa da infeção. Desde então, muitos outros pisos daquela unidade ficaram dedicados ao tratamento de doentes com o novo coronavírus.
“Ontem levei dois doentes para o serviço de urologia, por exemplo, que também já só vai receber doentes infetados. Há pisos dedicados a doentes com este vírus que estão a ficar lotados, o que significa que isto está a crescer e muito”, esclarece.
O enfermeiro fala-nos de outra situação: um homem de 44 anos que entrou no hospital com um enfarte e que nem pouco imaginava que podia estar infetado. Mas estava.
“Agora, todos os doentes têm de fazer o teste quando dão entrada no hospital. Este senhor ficou muito enervado, mas surpreendeu-me a forma positiva como depois encarou a notícia. Ele disse-me: ‘Não vai ser nada e se tiver de ir para isolamento estou pronto’. Isto depois de um enfarte. Fiquei chocado, desta vez pela positiva.”
Continuou: “Perguntei-lhe se estava ansioso e passei-lhe uma mensagem positiva — que estava estável do problema cardíaco, não tinha sintomas e que era novo. São palavras até difíceis de dizer porque nunca sabemos se vai correr tudo bem, mas temos de passar uma mensagem de esperança — para os doentes e para nós.”