Foram três dias a comprimidos. Só assim é que José Beites, proprietário do Miquipal, conseguiu resistir às provocações do chef Ljubomir no último episódio de “Pesadelo na Cozinha“, que foi transmitido na TVI no domingo, 7 de outubro. Num restaurante de cozinha aberta — da sala principal vê-se praticamente tudo o que o cozinheiro está a fazer — e com o espaço a “brilhar como um espelho”, Ljubomir teve de se virar para os defeitos profissionais do dono. “Acorda, palhaço”, disse-lhe em frente das câmaras. Nos bastidores foi ainda pior: “És uma merda, não vales nada”, repetiu várias vezes.
“Só pensava na minha neta e nas minhas filhas. Houve uma altura em que bloqueei completamente e só pensava ‘eu não estou cá’. Não via nada a minha volta”, conta José Beites à NiT.
O restaurante continuou praticamente vazio depois das mudanças realizadas pela produtora Shine Iberia e por Stanisic. Tal como aconteceu noutros espaços visitados pela NiT, o arrependimento do staff em ter aberto as portas a “Pesadelo na Cozinha” é mais do que evidente. Apesar de José ter mantido na carta quase todas as sugestões de Stanisic, a relação com o chef foi super agressiva de manhã até à noite. Mais até do que pareceu durante o programa. “A dada altura puxou pela conversa das luvas de boxe e eu respondi-lhe: ‘Somos dois, e acabei de fazer 10 quilómetros de corrida’.”
A conversa com a NiT é tranquila, mas percebe-se que este episódio continua a enervar José, que se teve de “conter muito” para não responder à letra ao dono do 100 Maneiras, que fica em Lisboa. “Faço boxe, levanto pesos, estou em forma, treino muito”, diz à NiT.
Em vez de partir para a violência, adotou outra estratégia: sempre que estava prestes a perder o controlo, o cozinheiro tomava um ansiolítico. “Ia para a casa de banho, respirava fundo, pensava nas minhas filhas, na minha neta e na minha mulher. Porque não é fácil para alguém como eu, que trabalho nisto há 34 anos, ouvir as provocações de um homem com 40 anos”. Depois, em frente das câmaras, José conseguia projetar uma imagem completamente diferente do que sentia.
Ao contrário do que costuma acontecer, desta vez não foi o proprietário que pediu ajuda ao programa da TVI. Foi a própria produção que desafiou a gerência do restaurante para participar. “Acho que foi um cliente que conhecia o espaço e falou com a produção.”
Algumas semanas antes de formalizarem o convite, os elementos da Shine Iberia almoçaram e jantaram várias vezes no Miquipal, na Parede, de forma anónima. “Depois falaram comigo, perguntaram se teria interesse em inscrever-me”.
“Tinha visto alguns episódios da temporada anterior. Perguntei o que poderia acontecer, que tipo de intervenção iriam fazer e falei com a minha família”. José aceitou o convite sobretudo por causa da quebra vertiginosa de clientela que o restaurante sofreu nos últimos dois anos.
“Se é uma ajuda, e o intuito dele é esse, porque não? Se tenho comida boa, trabalho bem, vou para o lado de qualquer cozinheiro sem me atrapalhar, porque não hei-de aceitar?” O problema é que “Pesadelo na Cozinha” é um reallity show, e José não estava minimamente preparado para a tempestade que estava prestes a chegar ao Miquipal.
Neste momento, quase um mês depois das gravações, José só está certo de uma coisa: “Se fosse hoje, não o teria feito. Expus-me demasiado às humilhações. Tenho 52 anos, não posso aceitar tanto palavrão”. E acrescenta que só encontrou alguma paz na vida porque entretanto nasceu a neta.
“Ela nasceu há 15 dias, foi isso que me aliviou”, diz, enquanto exibe a lamela de comprimidos, guardada numa camisa pendurada na cozinha. Já faz parte do passado.
Ver o mar na janela do Ramiro
José está à frente do Miquipal há 18 anos. O restaurante já existia — e até tinha o mesmo nome, mas o proprietário desconhece a origem. Quando surgiu a oportunidade para o comprar, o cozinheiro fez uma sociedade e avançou para negócio.
“Foi um sonho realizado. Qualquer empregado de restaurante pensa um dia ter o próprio espaço”. Ao fim de dois meses, surgiu o primeiro problema: o sócio, que tinha outros espaços de restauração, decidiu abandonar o projeto. “Fiquei sozinho, com todas as dívidas, contas para pagar, despesas, tudo o que estava para trás.”
Mesmo assim aceitou tomar conta do restaurante. Impôs apenas uma condição: se o negócio não funcionasse, o sócio teria de lhe pagar a sua parte. Num espaço escondido, situado numa rua de sentido único, por cima de uma igreja evangelista, sem grande movimento à excepção dos pais que vão deixar os filhos na escola, a zona sempre teve muito pouco para oferecer. Surpreendentemente, começaram a chegar clientes após a mudança da gerência. “Paguei as dívidas e ainda comprei a parte do meu sócio”.
Na altura, o Miquipal era um restaurante de comida portuguesa: vendia costeletas, carapaus, bacalhau, febras, dourada, robalo, cozido à portuguesa, etc. “Trabalhava com uma cozinha com mais de 40 anos, tinha experiência, sabia o que estava a fazer”, recorda o proprietário.
Contudo, há cinco anos alterou substancialmente a carta para se dedicar aos mariscos. Numa zona perto do mar — da esplanada ainda se vê o Atlântico e a verdade é que se arrendam apartamentos com “vista de mar” bem mais tristes que a do Miquipal —, o proprietário decidiu mudar o conceito que estava a correr bem. E foi exatamente por aí que começaram os problemas com o chef Ljubomir.
Quando chegou pela primeira vez ao Miquipal, Stanisic foi implacável: mandou o cozinheiro deitar fora as sapateiras, garantindo que elas estavam estragadas. E aconselhou José Beites a deixar o marisco de fora da carta.
“Fiz-lhe a vontade, deitei fora o que me pediu. Disse-me que estávamos longe do mar. E deu-me um conselho: ‘queres comer marisco vai ao Ramiro’. E eu respondi: ‘realmente é verdade, lá está a ver o mar e aqui não.’ Penso que foi mais ou menos isto”, conta, lembrando que a sua clientela habitual procura o espaço para “mariscadas e peixe grelhado”.
Ljubomir não apresentou a José nenhum fornecedor, como aconteceu em episódios anteriores. “Levaram-me ao Continente, já depois das gravações do programa, para fingir que fazia compras.”
O marisco mantém-se na carta e o cozinheiro garante que nunca teve qualquer problema com os clientes por causa da sapateira, lavagante, ameijoas, entre outros frutos do mar.
“Conheço muito bem o Ramiro, o Relento, as grandes marisqueiras, os restaurante todos do Guincho, das Furnas, ao Mar do Inferno, Porto de Santa Maria, Faroleiro, Mestre Zé. O meu marisco não lhes fica atrás. E sabe porquê? Temos o mesmo fornecedor. Ou acha que me vendem o estragado e o bom aos outros?”
Apesar da forma confiante com que José defende a sua carta à NiT, durante o programa e à frente de Ljubomir, reconheceu várias vezes que sabia menos de cozinha do que pensava e que jamais voltaria a ter marisco naquele restaurante.
Das ovelhas para o lava-loiça
Quando tomou conta do Miquipal, José tinha apenas 33 anos, mas uma longa experiência na restauração. Nascido na zona da Beira Baixa, na Serra da Malcata, o pai era pastor e ele acompanhou-o dezenas de vezes para levar o gado a pastar. Mesmo depois de a família se ter mudado para Lisboa, em 1969, o pai manteve as 500 ovelhas, que pastavam na zona de Manique, perto da Serra de Sintra. A casa da família ainda existe: é onde vive a mãe, o pai já morreu. “Era uma casinha aqui, outra ali, agora esta tudo urbanizado.”
Estudou até aos 13 anos, altura em que desistiu da escola para começar a trabalhar. “Zé, se não queres estudar tens de trabalhar”, disse-lhe a mãe. Destino: um restaurante da zona, onde começou a tirar cafés e a lavar loiça.
“O café custava dois escudos [1 cêntimo na conversão direta] e a máquina era à manivela. Eu era tão pequeno que precisava de colocar uma caixa debaixo dos pés para poder tirar bicas.” Apesar de todas as dificuldades — entretanto, o pai tornara-se cantoneiro da Câmara de Cascais —, aqueles primeiros anos foram o prenúncio de uma vida atrás do balcão.
Passaram-se quase 37 anos até ao dia em que viu Ljubomir Stanisic entrar no seu querido Miquipal. Pelo meio, estagiou nove meses numa cozinha e foi empregado de mesa durante 13 anos. Também fez um pequeno curso de hotelaria, onde aprendeu a cozinhar a sério. Foi aí que a cozinheira espanhola o ensinou a fazer uma paelha. E foi precisamente esse o primeiro prato pedido pelo chef do 100 Maneiras. Gostou? “Não me disse nada.”
A remodelação do programa da TVI consistiu basicamente numa pintura nova da sala e na colocação de uma mesa capaz de sentar 15 pessoas, com bancos altos — e onde ainda ninguém se sentou. O restaurante fechou pouco depois das gravações para entrar numa fase experimental. José aceitou quase todos os pratos que Ljubomir sugeriu. Aliás, quando a NiT estava a almoçar, chegaram as sapateiras, vivas, que foram depois atiradas para dentro de um aquário. Não tinham aspeto de estarem estragadas.
O marisco fresco não tem sido, contudo, suficiente para convencer a clientela.
“Tem estado fraquinho. Cinco ou seis clientes por dia. Ao fim de semana é um bocadinho melhor”, conta José, que dias depois de o programa ter sido gravado foi convidado para passar três dias na cozinha do Bistro 100 Maneiras. Como já tinha acontecido com a ajudante de cozinha Laura durante o episódio.
José nunca se cruzou com Stanisic, mas aprendeu algumas das técnicas do chef jugoslavo. Além das que já tinha replicado ao longo do programa com o chef Mateus, que trabalha precisamente no 100 Maneiras.
“Gostei do que provei. Usam muitas especiarias, têm uma cozinha mais internacional, que faz sentido numa cidade como Lisboa. No meu não sei se vai dar certo, não trabalho com turismo. Mas concordei: se ele tem sucesso por alguma razão será.”