Quando a comediante Hannah Gadsby subiu ao palco para estrear o seu novo trabalho, lançado em 2017, fez questão de anunciar que seria, também ele, o último. “Tenho questionado toda esta coisa da comédia. Já não me sinto muito confortável com isto”, confessou à plateia. Durante uma hora, a australiana desmistificou uma das ferramentas do humor: criar tensão para depois a libertar com recurso a um par de gargalhadas. Desta vez, isso não ia acontecer.
“A tensão agora é vossa. Não vos vou ajudar nisto. Têm que aprender o que isto é”, concluiu. Gadsby referia-se à sua própria experiência de vida. Em 42 anos, a homossexualidade impôs-lhe uma série de confrontos com a homofobia, misoginia e violência. Estava na altura de exorcizar todos os demónios e decidiu fazê-lo em palco, mesmo que isso lhe custasse a carreira.
“Quebrei o contrato [com os espectadores], traí a confiança das pessoas e fiz isso de forma propositada, não foi um artifício”, recorda Gadsby ao “The Guardian”. Virar do avesso a fórmula da comédia comportava os seus riscos, mas não só não arruinou a carreira como a tornou numa celebridade mundial.
O especial que chegou à Netflix em 2018 maravilhou, primeiro os críticos, depois as audiências — embora nem todos tenham gostado da fórmula reinventada de Gadsby. Venceu prémios, de Melbourne a Edimburgo, até chegar à grande coroa dos Emmys, onde o guião de “Nanette” foi distinguido com um prémio.
Ao lado da onda de críticas positivas e de novos fãs — Emma Thompson e Monica Lewinsky entre as mais aguerridas — surgiu, como seria de esperar, uma fileira de críticos. À cabeça, alguns colegas humoristas e, nas filas do fundo, muitos homens irritados pela veia feminista de Gadsby.
Spoiler alert: a promessa de desitir da comédia não se concretizou e o sucessor de “Nanette” chegou mesmo à televisão esta terça-feira, 26 de maio, que é como quem diz, à Netflix. Mais uma vez, há muito de pessoal no espetáculo de Gadsby, mais algumas revelações e muito menos tensão. Tudo para provar de que não se tratou tudo de um one hit wonder.
A lição de “Nanette”
“Construí uma carreira à base do humor autodepreciativo e não quero fazer mais isso. Compreendem o que isso significa, vindo de alguém que apenas existe nas margens? Não é humildade, é humilhação. Rebaixei-me para poder falar, para procurar permissão para falar e não vou fazer mais isso, comigo ou com quem se identifica comigo. E se isso significa que a minha carreira termina, que assim seja”, explicou durante o especial de comédia que a tornou mundialmente famosa.
A lógica de Gadsby é simples: durante toda a vida tentou transformar os episódios violentos e homofóbicos que experienciou em piadas. E, por consequência, diz a própria, tornou-se numa aliada nessa mesma opressão.
O relato de uma agressão e de uma adolescência fechada no armário, enclausurada numa cidade católica e conservadora, provocaram desconforto na plateia e a quem assistia pela televisão. Um desconforto que é ferramenta de alguns comediantes. Só que neste caso, Gadsby não o desmontou com uma punch line — preferiu deixar o mal-estar entranhar-se nos espectadores.
Contrariamente ao que seria de esperar, “Nanette” foi um sucesso bombástico, particularmente nos Estados Unidos, embora muitos acusassem o especial de comédia de ser tudo menos isso: para os críticos, aquilo não era comédia.
“[Isso advém] de uma diferente cultura de comédia dos EUA. Na Austrália e no Reino Unido, onde os comediantes há muito que escrevem conceitos que quebram barreiras, ‘Nanette’ não foi assim tão estranho. Mas na terra dos especiais da Netflix, foi tudo muito diferente”, explica ao “The Guardian”.
A forte componente feminista do guião iria sempre dar origem a críticas. Gadsby sabia isso. “Sabem porque é que gosto tanto de contar piadas sobre homens brancos heterossexuais? Porque eles são uns grandes porreiraços”, notou com um golpe de ironia durante o especial de comédia que chegou mesmo a valer-lhe algumas ameaças de morte.
“Dizer que não fiquei assustada não é bem a melhor forma de medir a coisa. Leio-as apenas como violência casual, microagressões. O que acho interessante é que os homens defendem-se das minhas acusações de misoginia com discurso de ódio misógino. Fico sempre a pensar, o que raio é que vocês estão a fazer?“, revela no seu novo especial, “Douglas”.
As críticas negativas, acredita, são apenas uma minoria. “As únicas pessoas que o odiaram foram os nerds da comédia e eles são como o movimento anti-vacinação — uma pequena percentagem da população”, disse à “Vanity Fair”.
Meticulosamente criado para provocar emoções fortes, Gadsby não poderia prever o sucesso global que atingiria, mas sabia que iria tocar em algumas feridas e provocar reações. “É [um espetáculo] sexista, sem dúvida. [As críticas] eram um dado adquirido. Já estava à espera delas quando o escrevi. Este não é o meu primeiro rodeo”.
Um confronto com o autismo e a homofobia
Os anos 90 não foram um bom palco para adolescentes com dúvidas sobre a sua orientação sexual. Nascida e criada num ambiente conservador, admite que acabou por interiorizar alguma da homofobia latente. Quando aos 12 anos se cruzou pela primeira vez com pessoas que não condenavam a homossexualidade, ficou confusa.
“Quando ouvi alguém dizer que a homossexualidade devia ser legalizada, lembro-me de pensar para mim própria: ‘mas assim como é que paramos os pedófilos?”, confessou ao “The Sidney Morning Herald”.
A homossexualidade acabaria por ser legalizada na Tasmânia, embora isso não tenha livrado Gadsby de umas quantas experiências traumatizantes. Em “Nanette”, recorda um episódio no qual foi abordada por um homem visivelmente irritado. Hannah estava a conversar com uma mulher que, por acaso, era a namorada do indivíduo raivoso, que julgava estar a ver alguém a seduzir a sua companheira. A irritação foi interrompida quando percebeu que afinal, quem estava a falar com a sua namorada era uma mulher.
Os risos transformaram-se, mais tarde, em tremores de desconforto: o encontro não terminou com o pedido de desculpas tímido do homem, mas com uma violenta agressão, assim que notou que Hannah era lésbica.
“Quando ouvi alguém dizer que a homossexualidade devia ser legalizada, lembro-me de pensar para mim própria: ‘mas assim como é que paramos os pedófilos?”
Muito antes de lançar a carreira na comédia, estudou arte, trabalhou como projecionista num cinema em Darwin e viajou pelo país durante dois anos. A certa altura, deixou de conseguir trabalhar. Cada vez com mais dificuldades, acabou por ficar também sem sítio onde dormir. Até preencher os formulários da Segurança Social era um desafio. “Fui sem-abrigo durante algum tempo, estava sempre a esbarrar em obstáculos na Centrelink [a agência de segurança social australiana]. Não conseguia encontrar a ajuda de que precisava. Estava à deriva”, recorda.
Foi forçada a pedir a ajuda da família, com quem já não falava. Sofria de uma pancreatite aguda. Toda esta espiral descendente foi explicada mais tarde, com o diagnóstico de hiperatividade e défice de atenção.
Gadsby sentia que era uma outsider, o elemento estranho onde quer que estivesse — e embora a homofobia interiorizada após anos de convivência numa comunidade marcadamente homofóbica fosse um dos fatores, não explicava tudo. Pouco antes de acabar de escrever “Nanette”, foi também diagnosticada com autismo.
“Vinha do supermercado e chegava a casa irritada. Acreditava que era uma pessoa zangada. [O diagnóstico] ajudou a experienciar o mundo através de mim própria, ao invés de observar o que os outros faziam e dizer ‘era isso que eu devia estar a fazer'”, recorda.
Não quis introduzir mais um tema em “Nanette”, por isso guardou a revelação para a estreia de “Douglas”, onde explica como é que finalmente percebeu como é que o seu cérebro processava tudo de forma diferente.
A carreira que não terminou
Questionada sobre a promessa de terminar a carreira feita em “Nanette”, Gadsby puxa de mais um trunfo no seu arsenal de piadas dirigidas aos homens que ruíram na era MeToo. “Desisti [da carreira] da mesma forma que o Louis C.K. pediu desculpas”, atirou.
O sucesso inesperado colocou-a num palco ainda maior, com todos a escrutinarem cada frase, cada palavra. A promessa foi uma delas, embora a falha não a incomode.
“Agora não tenho escolha: ou sou uma idiota ou sou uma hipóccrita. Serei uma hipócrita.”
“Achei que ia fazer cerca de 12 espetáculos e que me pediriam para ir embora. O plano fez ricochete”, revelou numa entrevista a Jimmy Fallon. E concluiu: “Se desistir agora, sou uma idiota. Se o espetáculo tivesse corrido tão mal quanto planeava, tinha funcionado, mas agora não tenho escolha: ou sou uma idiota ou sou uma hipóccrita. Serei uma hipócrita.”
Hoje, Gadsby explica o anúncio feito em “Nanette” como um artifício teatral. “O que quis dizer era: não estou preocupada com a minha reputação como comediante; não estou preocupada com a comédia como forma de arte. Estou, sim, preocupada com o que digo, não com a forma como o digo. Mas tornou-se catártico dizê-lo em palco e, de certa forma, acreditar nisso”, justifica.
A verdade é, contudo, mais simples. “E mais: o que é que eu ia fazer? Sentar-me num banco no meio do parque? Eu não posso desistir. Não sei fazer outra coisa”.
Quase três anos depois, as expectativas são altíssimas para o regresso ao palco do novo grande nome da comédia, embora que um servido com uma enorme dose de cepticismo. A australiana sabia disso e reformulou a estratégia de ataque nos primeiros minutos do espetáculo: “Se vieram à procura de traumas fresquinhos, estão esgotados”.
“Pessoalmente, precisava que [“Douglas”] fosse um escape, mas também algo para fugir ao molde que construí para mim em “Nanette”. Queria que fosse pateta, porque as pessoas precisam de saber que há nuances na vida depois do trauma”, confessa.