Maggie não era uma miúda de 15 anos normal. Todos os seus dias eram vividos em função de uma única coisa: a sua carreira na ginástica. A norte-americana era um dos maiores talentos do país, parte da elite. O sonho? Os Jogos Olímpicos.
Passava uma semana por mês no campo de treinos nacional, o rancho Karolyi, onde estava rodeada de profissionais que tinham apenas um trabalho: dar-lhes as melhores condições para serem atletas de topo. Não era isso que sentia quando entrava no consultório de Larry Nassar.
Assim que se deitava na marquesa, o médico da USA Gymnastics fechava as cortinas. “Não usava luvas. Dizia-me apenas que havia um nervo lá em baixo”, recorda. Maggie era uma das melhores atletas do país, mas também uma mera adolescente. O regime de treino era rigoroso e condicionava-as a cumprirem regras sem questionar. E isso incluía as recomendações e tratamentos médicos. Nassar sabia-o bem.
Os relatos dos abusos espalharam-se de forma discreta e não intencional. Maggie questionou as colegas sobre se recebiam os mesmos tratamentos. Uma treinadora ouviu a conversa e levou a informação até aos superiores. Uma investigação evoluiu lentamente. Dois anos depois, mais de uma centena de vítimas davam o seu testemunho, dando forma ao maior escândalo sexual da história do desporto.
Durante os longos 19 meses do processo, sublinhou-se a importância do relato da Atleta A, que motivou estrelas e medalhadas olímpicas a darem a cara e a fazerem a dura confissão perante o público de que tinham sido abusadas.
A investigação, levada a cabo por um pequeno jornal local, o “The Indianapolis Star”, é a história que sustenta o novo documentário da Netflix, “Athlete A: Abuso de Inocência”, que estreia esta quarta-feira, 24 de junho.
Em 2018, Maggie Nichols saiu do escuro. “Até aqui, fui identificada como a Atleta A pela USA Gymnastics, o Comité Olímpico Norte-Americano e a Universidade do Michigan. Quero que todos saibam que ele [Larry Nassar] não fez o que fez à Atleta A, fê-lo à Maggie Nichols”, revelou.
A whistleblower
O assédio de Nassar começou quando Nichols tinha apenas 15 anos. Uma pequena lesão nas costas, durante uma estadia no Rancho Karolyi, no Texas, levou-a ao consultório do médico.
“Confiava nele, mas depois começou a tocar-me em sítios onde achava que não devia. Não usava luvas e nunca me dizia o que estava a fazer. Não havia ninguém na sala e aceitava o que fazia porque os adultos me diziam que ele era o melhor médico e que podia aliviar a dor“, revelou a atleta.
O escândalo também apanhou os pais desprevenidos. “Nunca ninguém esperava uma coisa destas. Durante os últimos quatro anos mandei a minha filha menor, uma semana por mês, para treinar no rancho. Estava orgulhosa, ela fazia parte da equipa nacional. Trabalhava tanto. A nossa família fazia todos estes sacrifícios. Nunca pensava que isto poderia acontecer”, confessou em 2018 ao “The Indianapolis Star”.
A relação entre Nassar e Nichols não se resumia aos tratamentos no rancho. “Eu achava que ele era meu amigo. Contactava-me no Facebook, elogiava-me e dizia que eu era bonita em diversas ocasiões. Eu só tinha 15 anos, achava que ele estava apenas a ser simpático”, explica.
Assim que os tratamentos impróprios começaram a ser denunciados dentro da organização, a USA Gymnastics optou por não o comunicar às autoridades — e contratou um detetive privado para investigar as alegações. Depois, tudo começou a mover-se de forma cada vez mais lenta, para desespero da vítima. Só ao fim de cinco semanas é que o FBI foi chamado.
O sonho dos Olímpico, esse estava cada vez mais longe. Uma lesão no joelho obrigou-a a submeter-se a uma cirurgia e a interromper os treinos. Quando regressou, nada foi igual. Uma exibição pouco conseguida resultou numa pontuação insuficiente para ser escolhida para a equipa que iria aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.
“Estava num estado de ‘não consigo fazer mais isto’. Mentalmente e fisicamente, não era capaz. Não conseguia fazer boas exibições. Foi provavelmente o meu momento mais baixo. Não queria competir. Era a competição mais importante da minha vida e, mentalmente, não estava lá”, recordou Nichols.
Um par de dias antes de ver as colegas conquistarem nove medalhas olímpicas, era publicada a investigação do “The Indianapolis Star”, que desfiava o novelo de horrores que a USA Gymnastics escondia. O caso de Maggie Nichols estava longe de ser o único. Durante pelo menos duas décadas, centenas de atletas foram sexualmente abusadas. E todas as histórias foram sistematicamente encobertas pelos dirigentes máximos da organização.
Larry Nassar, o monstro
As pré-adolescentes abdicavam de uma vida pela glória olímpica. Os pais sacrificavam tudo pelo sonho. E quando as inevitáveis lesões ameaçavam o percurso vitorioso, ninguém negava a ajuda do médico milagroso. Era até uma honra ser tratado por Larry Nassar, o homem que tratava atletas olímpicos.
Começou a trabalhar na USA Gymnastics em 1986 como treinador. Formou-se em medicina na Universidade do Michigan, onde também trabalhou. Eventualmente, subiu na hierarquia e tornou-se no coordenador médico da organização que monta as equipas olímpicas.
O estatuto que ostentava permitia-lhe não só ter acesso a centenas de atletas, como também a recrutá-las.
“Era um médico fantástico”, chegou a escrever numa carta apresentada durante o julgamento. “Não é médico nenhum”, atirou a juíza Rosemarie Aquilina.
O caso de Nichols e a investigação do “The Indianapolis Star” abriram as comportas. Em pouco tempo, mais de 300 vítimas confessaram terem sido abusadas por Nassar. Um número de fazer corar predadores famosos como Bill Cosby ou Harvey Weinstein.
Entre as vítimas de Nassar estavam alguns dos nomes mais sonantes da ginástica norte-americana e mundial. Simone Biles, uma das ginastas mais medalhadas da história do país, era uma delas. McKayla Maroney, a miúda do famoso meme e medalhada olímpica, foi outro dos nomes destacados entre a extensa lista.
Nassar não atacava apenas no rancho Karolyi. Os abusos aconteceram um pouco por todo o mundo, dos Olímpicos de Londres em 2012 aos encontros de ginástica em Roterdão, na Holanda. Dessas mais de 300 vítimas, 156 deram a cara em tribunal para pôr fim à impunidade de Nassar.
Megan Halicek foi uma delas. Chegou à marquesa do médico também com 15 anos, com uma coluna fraturada. Os abusos começaram logo imediatamente. “Fê-lo uma vez, e outra, e mais outra. Tudo enquanto me contava histórias sobre a sua jornada olímpica. Fechava os olhos, sustinha a respiração. Só queria vomitar. Até hoje, este sentimento não desapareceu”, revelou no banco das testemunhas.
Longe do mundo da ginástica, Nassar continuava a ser um predador. Kyle Stephens, conhecida por Vítima ZA, destoava das restantes vítimas presentes no tribunal. Ela não era ginasta. Era filha de um casal amigo do médico.
À juíza, revelou como Nassar deu início aos abusos quando tinha apenas seis anos. “Ainda não tinha perdido todos os dentes de leite”, notou. Começou por despir-se à sua frente, depois a masturbar-se, até chegar aos inevitáveis abusos sexuais. Quando contou tudo aos pais, eles não acreditaram e obrigaram-na a pedir desculpa.
Na sala de audiências, recordou o episódio em que Nassar lhe disse, em frente aos pais, que se um dia fosse realmente abusada, devia relatá-lo às autoridades .”Bem, Larry, cá estou eu”, disse dirigindo-se diretamente ao banco dos réus: “Talvez percebas agora que as meninas não são pequenas para sempre. Crescem e tornam-se em mulheres fortes que regressam para destruir o teu mundo”.
Nassar foi condenado a mais de 175 anos de prisão efetiva pelos crimes, que se juntaram aos 60 anos a que já havia sido condenado por posse de pornografia infantil. “Acabei de assinar a sua sentença de morte”, disse a juíza.
O lado negro da USA Gymnastics
Como é que um predador como Nassar demorou tanto tempo a ser descoberto? A verdade é que não faltavam relatos dos comportamentos abusivos do médico. Uma investigação desvendou relatos de queixas feitas em 1998. Outras tantas se seguiram. O resultado foi sempre o mesmo: foram ignoradas e guardadas numa gaveta.
Nassar não foi o único predador protegido pela USA Gymnastics, que em vários momentos encobriu alegações de abusos por parte dos seus funcionários. Uma estratégia para manter limpa a reputação da organização — e evitar assustar os indispensáveis patrocinadores. Ao final do dia, as medalhas olímpicas eram mais importantes do que qualquer abuso.
A denúncia de Nichols deu origem a um processo complexo de encobrimento no seio da organização, revelou uma investigação posterior. Nassar foi uma das vítimas, embora tenha saído pela porta grande: retirou-se das funções sem qualquer explicação.
Documentos revelados mais tarde comprovaram que no final de 2016, chegou a um acordo extrajudicial com McKayla Maroney, no valor de 1,25 milhões de euros — uma violação da lei californiana que impede este tipo de acordos em casos de crimes sexuais.
Pelo caminho e com a complacência da USA Gymnastics, que não reportou as alegações aos outros empregadores do médico, Nassar terá abusado de mais vítimas na clínica da Universidade do Michigan.
A face mais visível deste encobrimento é a de Steve Penny, então presidente da USA Gymnastics. Não só incumpriu a obrigação legal de entregar à polícia todas as alegações de abusos, como acabou por ser acusado de manipulação de provas no caso de Nassar. Uma acusação que ainda está em tribunal e da qual se declara inocente.
“Não ia tentar arruinar as chances da minha filha porque denunciamos uma situação de abuso sexual de uma menor”, disse a mãe de Maggie Nichols
“Quem era eu para o questionar”, recorda a mãe de Nichols do momento em que Penny garantiu que as suas queixas seriam devidamente tratadas. “Era o presidente. A minha filha era uma das maiores concorrentes aos lugares de topo da equipa de ginástica. Não ia discutir com alguém que é um presidente de uma organização americana, que me diz que chamou as autoridades. Não ia tentar arruinar as chances da minha filha porque denunciamos uma situação de abuso sexual de uma menor”, explicava em 2018.
Se Penny era a face mais visível, a máquina olímpica fornecia um cenário perfeito para predadores e aproveitadores. A pressão era de tal forma intensa que as atletas tornavam-se obedientes. Demasiado obedientes.
“Acho que as pessoas não têm noção do que era o rancho e de quão assustador era o ambiente por lá”, explica Maggie Nichols.
No rancho gerido por Béla e Márta Karolyi, onde era treinada a elite da ginástica, saíam rumores de que as atletas passavam fome e que eram os colegas rapazes que lhes passavam alguns petiscos. Em 2018, depois do escândalo, a ligação da USA Gymnastics com o local de treinos foi anulada. Já não valia tudo em troca de um par de medalhas.
A pergunta que ainda hoje se faz é quase sempre a mesma. Como é que isto aconteceu e como é que cresceu até ganhar esta esta dimensão? A antiga ginasta norte-americana Jennifer Sey tem a resposta: “[Este escândalo] não podia ter acontecido noutro desporto senão na ginástica. Estas miúdas são preparadas desde muito novas para negarem a suas próprias experiências. Doem-te os joelhos? Estás a ser preguiçosa. Tens fome? És gorda e gananciosa. São treinadas para duvidarem dos seus próprios sentimentos e é precisamente por isso que é possível que isto tenha acontecido a mais de 150 delas”.