Cinema

Islão, George Floyd e críticas a Torres. As polémicas que perseguem Karla Sofía Gascón

A atriz de “Emilia Pérez” abandonou as redes sociais devido a partilhas controversas. Há quem peça que seja afastada da disputa aos Óscares.
A atriz está a ser criticada.

O que deveria ser um passeio rumo ao topo por parte Karla Sofía Gascón, pelo seu papel em “Emilia Pérez”, transformou-se num verdadeiro campo de batalha. Desde que foram anunciadas as nomeações aos Óscares, a 23 de janeiro, nasceu uma estranha e improvável guerra nas redes sociais entre os fãs de várias produções nomeadas — e a disputa acabou por chegar à estrela, de 52 anos.

Em causa está a rivalidade criada com os fãs de Demi Moore e, sobretudo, de Fernanda Torres, ambas nomeadas ao troféu de Melhor Atriz, graças às participações em “A Substância” e “Ainda Estou Aqui”, respetivamente. A pouco mais de um mês para a cerimónia, que decorre a 3 de março, a troca de acusações é semelhante a um jogo de ping pong.

Após várias críticas, a rivalidade escalou quando, a 29 de janeiro, Gascón esteve no Brasil para promover o seu filme. Numa das entrevistas, concedida ao jornal “Folha de São Paulo”, foi questionada sobre a disputa e acabou por dar a sua opinião sobre a equipa de comunicação da estrela brasileira.

“Em nenhum momento vão ver-me a falar mal da Fernanda Torres ou do filme da Fernanda Torres. Mas, por outro lado, há pessoas que trabalham com ela e que falam de mim e de ‘Emília Pérez’. Isso fala mais deles e do filme deles, do que do meu”, afirmou.

Quando as críticas começaram a surgir, a atriz esclareceu a declaração ao público. À revista “Variety”, explicou que o comentário se referia à “toxicidade e discurso de ódio violento” que se formou nas redes sociais. “A Fernanda tem sido uma aliada maravilhosa, e ninguém diretamente associado a ela tem sido nada além de solidário e extremamente generoso”, cita a publicação.

Em poucos dias, milhares de fãs de “Ainda Estou Aqui” juntaram-se para pedir que a atriz espanhola fosse afastada da corrida aos prémios, mostrando cópias do regulamento da Academia. Porém, não foram feitos comentários depreciativos sobre a atuação de Torres e, por isso, nenhuma regra foi violada.

Apesar das controvérsias, a relação entre as duas artistas não parece ter sido afetada. Num vídeo publicado na sua página de Instagram, a 25 de janeiro, Fernanda Torres falou aos seguidores para elogiar a prestação de Karla Sofia Gascón e defendê-la dos ataques de ódio que estava a receber online.

Do Islão a George Floyd: as publicações polémicas

O apelo não surtiu efeito e, esta sexta-feira, 31 de fevereiro, a atriz decidiu encerrar a conta na rede social X (antigo Twitter) após afirmar que está a ser alvo de uma “campanha de ódio e desinformação”. “Ameaçaram-me de morte, insultaram-me e assediaram-me até à exaustão”, destacou num depoimento citado pela CNN.

Esta reação surge após terem sido partilhadas várias publicações antigas que incluem conteúdo racista. “Nunca vi tweets tão racistas de alguém que está a fazer campanha para ganhar um prémio da Academia. Há mais de uma dúzia”, lê-se num dos vários tweets virais com imagens do conteúdo.

Uma das publicações, partilhadas a novembro de 2020, aborda o assassinato de George Floyd, vítima da brutalidade policial nos EUA. “Acho que muito poucas pessoas se importaram com Floyd, um vigarista viciado em drogas, mas a sua morte serviu para mostrar, mais uma vez, que ainda existem pessoas que consideram os negros como macacos sem direitos e consideram os polícias como assassinos.”

Quanto à premiação, Gascón escreveu, em 2021, “que os Óscares parecem uma cerimónia de filmes independentes e de protesto”. “Não sabia se estava a assistir a um festival afro-coreano, a uma manifestação do Black Lives Matter ou ao 8M [movimento pela vida das mulheres]”, acrescentou.

Numa outra ocasião, questionou “o aumento de muçulmanos” em Espanha. “Sempre que vou buscar a minha filha à escola, há mais mulheres com o cabelo coberto e saias até aos calcanhares. No próximo ano, em vez de inglês, vamos ter que ensinar árabe”, afirmou.

Em setembro de 2020, publicou a fotografia de um casal islâmico e uma criança a comer num restaurante. “É maravilhoso, sem qualquer machismo. As mulheres são respeitadas, e quando são tão respeitadas, ficam com um pequeno buraco quadrado no rosto para que os olhos e as bocas fiquem visíveis, mas apenas se elas se comportarem.”

As críticas foram expandidas a outras religiões. “Estou tão cansada de tanta merda, do islamismo, do cristianismo, do catolicismo e de todas as crenças idiotas que violam os direitos humanos”.

Mais tarde, várias pessoas notaram que a conta oficial da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas não segue o perfil de Karla Sofía Gascón no Instagram, levando à especulação que deixou de ser seguida após o envolvimento em várias controvérsias. Fernanda Torres, Cynthia Erivo e Demi Moore, as outras nomeadas na mesma categoria, são todas seguidas pela Academia —com exceção de Mikey Madison, que não tem conta na rede social.

Após desaparecer das redes sociais, afirmando que quer proteger a filha, de 13 anos, a protagonista de “Emilia Pérez” lamentou “ter causado dor” com as partilhas. “Como membro de uma comunidade marginalizada, conheço muito bem este sofrimento e lamento profundamente que cause dor. Lutei toda a minha vida por um mundo melhor”, concluiu. “Acredito que a luz triunfará sempre sobre a escuridão.”

Moore e Torres não escaparam às críticas

Antes dos comentários, a rivalidade dos fãs também levou a que fossem feitas acusações a Demi Moore e Fernanda Torres. Os fãs da brasileira partilharam um vídeo em que Demi Moore, na altura com 19 anos, beija um rapaz de 15. Como resposta, os seguidores da norte-americana resgataram um vídeo em que Fernanda Torres aparece a fazer blackface durante uma participação no programa “Fantástico”, há cerca de 20 anos.

A controvérsia obrigou a que, na segunda-feira, 27 de janeiro, Fernanda partilhasse um pedido de desculpas. “Há quase 20 anos, apareci de blackface no sketch de humor de um programa de televisão brasileiro”, começou por dizer à revista “Deadline”.

“Naquela época, apesar dos esforços dos movimentos e organizações negras, a consciência da história racista e do simbolismo do blackface ainda não tinha entrado na consciência pública dominante no Brasil. Graças a uma melhor compreensão cultural e a conquistas importantes, mas incompletas, neste século, está muito claro agora no nosso país e em todo o lado que fazer blackface nunca é aceitável”, acrescentou.

Demi Moore, outra das favoritas à corrida pelo Óscar de Melhor Atriz, ainda não se pronunciou sobre nenhum dos dramas que têm marcado esta edição dos Óscares.

O ódio ao filme de Gascón

Desde que a produção “Emilia Pérez”, de Jacques Audiard, recebeu umas impressionantes 13 nomeações para os prémios da Academia, a produção também tem provocado reações extremas. Apesar de ter sido ovacionado em festivais internacionais e até ter recebido prémios em Cannes, fora dos corredores de Hollywood, os aplausos são raros.

“É uma humilhação racista e eurocêntrica. Quase 500 mil mortos e França decide fazer um musical”, lê-se na publicação viral que se refere às vítimas do narcotráfico, um dos temas da longa-metragem.  “O México odeia ‘Emilia Pérez’”, conclui o autor do texto.

A narrativa arranca com a vida dupla de Juan “Manitas” Del Monte, um chefe de cartel que decide fingir a sua morte para renascer como Emilia Pérez e começa a viver a sua verdadeira identidade como mulher transgénero. Esta história, inspirada no romance “Écoute” de Boris Razon, quer oferecer uma exploração de identidade, violência e busca por redenção.

Na Internet, porém, vários argumentam que o filme glorifica o processo da vaginoplastia e, de forma mais grave, trivializa a dor real dos familiares de pessoas que foram raptadas. Há décadas que o México enfrenta crimes relacionados com guerras entre cartéis que faz milhares de vítimas.

Outras críticas debruçam-se sobre a autenticidade cultural. A escolha de filmar a maior parte do filme em França e a escassez de atores mexicanos no elenco principal, com apenas Adriana Paz representar o país na equipa inteira, têm sido pontos de grande controvérsia, sobretudo entre o público mexicano.

O cenário piorou quando Audiard, de 72 anos, revelou durante uma entrevista num festival de cinema que não tinha estudado a história do México. “Já sabia o que precisava de saber”, comentou.

Os ataques à produção não vêm apenas do México, mas também da comunidade LGBTQIA. A associação norte-americana Gay & Lesbian Alliance Against Defamation (GLAAD) considerou o filme “um passo atrás” no que diz respeito aos direitos gay e trans. O foco da história não está na transição de Emilia, mas sim na destruição causada pela sua vida passada.

Farta de ser atacada diariamente pela própria comunidade — os tweets virais de ódio ao filme têm sido constantes desde o anúncio dos nomeados aos Óscares —, Gascón começou a ripostar.  “Devem ser muito equilibrados para criticarem o trabalho de 700 pessoas sentados no vosso sofá, ao lado da PlayStation,” disse ao “The Hollywood Reporter”. “Eles dizem que falam por toda a gente. Deixem-me dizer-vos: ser da comunidade LGBTQIA+ não faz com que sejam menos idiotas.”

Leia o artigo completo da NiT sobre como o filme mais nomeado para os Óscares deixou o mundo furioso.

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