“O filho de mil homens” ou “a máquina de fazer espanhóis” deram-lhe os prémios e o reconhecimento dos leitores, mas a carreira de Valter Hugo Mãe começou há exatamente 20 anos, quando publicou um livro de poesia, “silencioso corpo de fuga”. Porém, a verdade, é que a paixão pela escrita nasceu ainda antes de ele perceber exatamente o que isso era. Aos seis anos escreveu uma quadra sobre a praia — mas garante que nunca a dirá a ninguém.
Queria ser músico mas era demasiado tímido — entretanto conseguiu controlar esse medo e desde 2008 é vocalista dos Governo —, estudou Direito, fundou uma editora, publicou contos, livros infantis e ganhou dezenas de distinções. A 3 de outubro, segunda-feira, lança um novo romance, “Homens imprudentemente poéticos” (Porto Editora), sobre um artesão de leques japonês, e a NiT falou com Valter Hugo Mãe sobre a viagem ao Japão, os rituais de escrita e a infância em Vila do Conde, onde continua a morar. Leia a entrevista completa e veja o vídeo no qual o autor escolheu usar “Mãe” em vez do seu verdadeiro apelido, Lemos.
Celebra agora 20 anos de carreira. Já lhe caiu a ficha? Como é que se festeja, de facto, uma data assim?
Para mim o fundamental é sentir-me bem com o novo livro. Foi sempre a minha condição, se não houvesse livro, não valia a pena fazer festa nenhuma e só poderia haver livro se eu estivesse bem com ele. Nunca poderia publicar um livro em que acreditasse menos só para coincidir com os 20 anos.
Qual foi o maior elogio que lhe fizeram até hoje?
Em Leiria, um senhor que era psicólogo pediu-me para assinar dois exemplares de “O filho de mil homens”, uma para cada filha. Disse que, se morresse, queria que aquela fosse verdadeiramente a herança delas. Achava que aquele livro era o que de mais precioso podia deixar às filhas. [pausa] Na altura fiquei muito… ainda fico um bocado baralhado. Fiquei muito comovido, nem sabia o que escrever na dedicatória. Quase lhe pedi: “O senhor é que devia assinar um livro para mim, devia guardar as suas palavras.” Já me aconteceram coisas incríveis, como aparecerem com bebés a quem deram o nome Valter exatamente por causa desse livro.
Disse numa entrevista de 2013: “Sonhei toda a vida com fazer bem ao mundo, por mais que isso possa parecer ingénuo ou estúpido. Mas sonhei sempre com a oportunidade de deixar um mundo melhor quando morresse.” Esse tipo de gestos mostram-lhe que já conseguiu realizar um pouco desse sonho?
Sim, sinceramente acho que sim. Se calhar é arrogante da minha parte, mas acho que os meus livros, sendo tragédias pegadas, têm uma pulsão construtiva, têm uma necessidade de elogiar a humanidade. Se passo e exponho o grotesco é exatamente porque vivo com a utopia de ver a universalidade dos homens a chegar a uma sociedade melhor.
Também disse que se sentia muitas vezes sozinho e que a felicidade não era um sentimento constante. Mas lida bem com isso, é uma opção?
É sobretudo uma constatação racional. A minha vida até é uma confusão de muita gente, amigos, pessoas que têm carinho por mim. Sentir-me só é quase abusivo, ofensivo para tanta gente que gosta de mim, mas é uma solidão que é mais existencial.
“No Brasil, uma senhora gostava tanto de mim que me levou para casa dela, meteu as minhas coisas todas no carro”
É mais solitário do que só?
É mais um traço de caráter do que uma ocorrência dos meus dias. Não passo muito tempo sozinho nem sou uma pessoa triste. Agora, concebo muito a tristeza. Eu não sou triste mas tenho uma consciência de tristeza muito profunda. Por isso trabalho tanto nos meus livros e tento através das palavras criar uma cura para a tristeza.
Voltando atrás, como e quando é que a música entrou na sua vida?
A música era a minha rebeldia de miúdo. Adorava as estrelas pop oxigenadas, fui o admirador número um do Michael Jackson e da Madonna — custa-me a crer que a Madonna ainda esteja operante.
Quando era miúdo sonhava ser músico?
Se pudesse ter sido, adoraria. Mas eu era muito tímido, não era algo que pudesse acontecer.
Entretanto já fez várias atuações. Hoje já consegue liberta-se em palco?
É um processo gradual mas sou tímido.
Também fica muito exposto.
Sim, e a pessoa que cria qualquer tipo de arte está sempre a ser julgada pelos outros. É fácil ser treinador de sofá mas, contrariamente aos jogadores de futebol, as pessoas do universo da arte não têm treinador, não têm equipa, de vez em quando têm de aprender a lidar com esse palco. Às vezes as pessoas magoam-nos mesmo sem perceberem. Por exemplo, muita gente acha que pode dizer o que lhe apetecer na Internet porque não imagina que aquilo possa chegar à pessoa de quem estão a falar. Às vezes dizem coisas de uma profunda injustiça.
Já houve algum comentário desses que o marcou?
Sim, coisas equívocas. Até já houve coisas de cara a cara. Em Macau, um senhor que me recebeu no restaurante dele sentiu necessidade de me dizer que tinha lido um livro meu e que tinha detestado, que era uma porcaria. Eu disse que lamentava e perguntei qual era. Ele começou a explicar e eu não o conseguia identificar. Depois foi buscá-lo e afinal era um livro de outro escritor. Isto às vezes acontece na Internet, as pessoas atribuírem-nos coisas que nem são nossas, falarem de nós pressupondo que somos uma coisa que não somos. Às vezes magoa, quando acontece alguma coisa boa comigo, ler coisas como: “São sempre os mesmos, fazem parte do grupinho não sei do quê.” Eu vivo nas Caxinas, uma terra de pescadores, vivo lá desde os meus nove anos, não saí de lá até hoje, tenho um grupo de amigos no café que não dominam o mundo, não tenho amigos na política ou donos de coisa nenhuma.
Online é fácil falar, é anónimo.
Sim, mas magoa muito, porque todo o esforço, aquilo de que abdicamos e aquilo que é tão sonhado, para o qual fizemos tanto esforço, de repente é demolido por pura maldade. Eu sei que as pessoas escrevem isso provavelmente para se sentirem bem com elas mesmas. É uma pena, porque se as pessoas se tornam visíveis com alguma coisa, provavelmente sonharam muito poder escrever um livro, poder consumar esse percurso e não é ilegítimo.
O Brasil adora-o. Sente-se mal-amado aqui e bem tratado lá?
Há pessoas que dizem que eu faço mais sucesso no Brasil do que em Portugal, mas não é verdade. Sou muito bem recebido cá, tenho muitas pessoas que gostam de mim e dos meus livros.
Lá são mais efusivas?
Genericamente, as pessoas lá são mais explosivas.
Já lhe aconteceu alguma história mais inusitada?
Tenho muitas, até já fui raptado. Uma senhora gostava tanto de mim que me levou para casa dela, meteu as minhas coisas todas no carro, ficcionou que era minha grande amiga, sabia tudo sobre mim.
Essa história é até assustadora.
Sim, mas ela era uma pessoa maravilhosa, linda de morrer. Eu disse: “Se tiver de ser raptado, que seja assim.” E deixei, fui um bocadinho raptado. Há pessoas que me oferecem coisas, querem que vá para a casa delas. Eu já disse que gostava de escrever um livro no Brasil, sobre o Brasil, há pessoas que me oferecem estadia, emprestam quintas com cavalos. Conheci há pouco tempo um senhor que até um avião tem e que queria que eu fosse e viesse. O Brasil tem uma dimensão que nós não temos e tem uma propensão para a excentricidade que nós aqui não temos.
Se calhar se lhe fizerem um comentário mais negativo no Brasil não o afeta tanto, por não ser o sítio onde nasceu?
Pois, talvez. Nós ponderamos muito em relação à capacidade do português de lidar com o sucesso do vizinho, mas isso é humano, acontece em todo o lado. Mas é frustrante, é verdade, às vezes parece que estou na idade perfeita para esse tipo de desprezo. Já não sou um miúdo mas também ainda não sou um velhote adorável, é aquele tempo da vida em que não somos poupados a coisa nenhuma. É um pouco cruel, devo admitir. Sobretudo desde o aparecimento das redes sociais tenho muito pudor em comentar negativamente alguém, quase sempre as coisas saem exageradas ou profundamente injustas.
Tem algum ritual para escrever?
Tenho cada vez mais manias, é um bocadinho horrível. Tenho cada vez mais a impressão de que tenho de estar num sítio que não seja meu, que esteja vazio.
Não escreve em casa?
Escrevo em casa mas o arranque dos livros não. O momento em que faço umas impressões, pego nos livros que andei a ler, imagens, pinturas e exponho tudo o que colecionei, preciso de não estar em casa. Preciso de um lugar que seja também uma página em branco, para não me contaminar com memórias dos outros livros, livros futuros, coisas que ando a guardar. Em casa também há muitas solicitações e disponibilizamo-nos para ir ao café com os amigos.
Tem um local específico para isso ou é sempre diferente?Onde é que começou a escrever este livro?
Estive na Pousada de São Bartolomeu, em Bragança. As vistas são incríveis, cheguei lá e esqueci-me um bocado do Japão, tive de passar um tempo a convencer-me de que tinha mesmo de olhar para aquela paisagem e pensar no Japão. Normalmente levo umas malas com papéis e as minhas tralhas, tudo o que diz respeito às minhas anotações. Do Japão trouxe uns leques e quase decorei o quarto com eles, comprei uma espécie de kimono de homem que nem dá para usar mas para ter diante de mim a perceção do objeto. É uma coisa que fica cada vez mais pesada no meu método, é como se tivesse de marcar na agenda o início de um livro.
É quase como se fosse o dia para começar a trabalhar num sítio novo?
Sim, eu tenho sempre muitos cadernos mas para dar esse passo preciso de agendar uma espécie de férias e é muito esquisito.
Depois escreve relativamente depressa?
Tenho assim umas convulsões em que podem aparecer muitas páginas. Escrevo muitas páginas e deito fora muitas vezes, estou sempre a recomeçar mas é muito importante para mim esse isolamento. Depois, quando o livro começa a saber ele mesmo o que é, então aí posso estar em casa, ter o galo de Barcelos a olhar para mim, as fotografias dos meus sobrinhos e os livros todos.
“Quando começo um livro, preciso de um lugar que seja também uma página em branco, para não me contaminar com memórias dos outros livros”
Como é que lida com a pressão de ter de produzir? Ou não sente essa pressão?
Ainda antes deste novo livro sair, já alguns amigos me perguntavam o que estava a escrever. É uma forma de pressão, mas talvez eu também já não seja tão novo para me deixar esmagar por isso. O que me pressiona é a comparação comigo mesmo, estou sempre à procura de alguma coisa que faça falta no que já fiz. Isso é cada vez mais violento, por isso é que começo cada vez mais livros e deito cada vez mais livros fora. Chego a ter dúvidas se escolhi a melhor versão do livro, se na terceira versão eu não teria passado mais perto. É fundamental que no momento em que o entrego à editora, ele me pareça honesto e dentro das capacidades do meu trabalho.
Lembra-se do primeiro texto que escreveu?
Foram uns versinhos mas na altura não lhe chamaria poema nem versos, porque nem sabia que isso existia. Eram sobre a praia.
Que idade tinha?
Tinha seis anos. Lembro-me exatamente de querer escrever e não saber escrever o que tinha inventado, era uma pequena quadra.
Lembra-se dela?
Lembro-me, é horrível e nunca a direi a ninguém. Foi tão traumático que me lembro.
Mas guardou-a?
Não mas tenho-a na minha cabeça. Nunca a disse a ninguém nem nunca a escrevi em lado nenhum. Era uma coisa horrível, claro, eu era um miúdo de seis anos, só escrevia palermices.
Ao mesmo tempo estava a aprender a escrever e a fazer experiências.
Sim e foi muito surpreendente para mim quando alguém me propôs numa aula um primeiro poema e eu ver um texto cortadinho, com frases pequeninas, foi surpreendente porque eu escrevia coisas assim sem saber que aquilo tinha um nome.
Em sua casa lia-se poesia? Essas influências vinham daí?
Não, era uma maluqueira minha, uma vontade de colecionar as cosias. Não podia ter o mar em casa, então tinha uma frase. Eu colecionava palavras e fazia listas das minhas favoritas.
E que mantém até hoje.
Exatamente, tenho palavras de que gostava em miúdo e pelas quais tenho um afeto personalizado, quase como se fossem gente. Eu fazia essas listas e de repente percebi que com aquelas palavras podia criar o que me apetecesse. Acho que foi das coisas mais iluminadas da minha infância, perceber que aquilo não servia apenas para anotar coisas úteis ou pragmáticas, não servia apenas para fazer a lista de compras ou escrever uma carta à avó. Aqueles poemas que eu não sabia que eram poemas eram uma coisa que eu achava que era só para mim.
Não mostrava a ninguém?
Não, nem tinha a noção de que aquilo podia ter interesse para outra pessoa, daí o meu espanto de, talvez na escola preparatória, de repente falarmos sobre um poema na escola, como se houvesse um lugar para mim. De repente perceber: “Eu vivo com este problema, sei o que isto é.”
Consegue ler o primeiro livro que escreveu?
É horrível, eu não frequento muito bem o meu passado no sentido do que fui fazendo. Sinto-me sempre em fuga, sinto sempre necessidade de chegar a outro lugar, de escrever algo que não tenha ainda escrito. De facto, é verdade que os meus primeiros livros de poesia, embora fundamentais para mim, são muito frágeis. Eram muito ingénuos, hoje uso a ingenuidade como um assunto mas, na altura, não chegava a ser um assunto. Gosto de alguns versos, há alguns de que eu me recordo e que vou recuperando. Hoje, com 45 anos, se alguém propusesse aqueles livros para editar, eu nunca publicaria.
Lembra-se do primeiro livro que leu?
Em minha casa havia uns livros de banda desenhada do Tio Patinhas e do Pato Donald, mas comprei o primeiro livro com 10 anos. Vi-o numa papelaria em Vila do Conde, nessa altura já vivia lá, e era um livro de Alfred Hitchcock para miúdos. Era de suspense, “O Segredo do Castelo do Terror”, ainda o tenho guardado. Adorei-o, embora o final fosse um pouco frustrante.
A partir daí começou a consumir livros avidamente?
Aí entendi o que eram os livros, percebi que eram histórias que nos contavam mas que não nos forneciam tudo, aconteciam dentro da nossa cabeça. Para mim foi verdadeiramente o início da aventura. Fui buscar os outros livros do Hitchcock, havia “O Segredo da Múmia Sussurrante” ou da “Múmia Verde”, era tudo para assustar. Depois fui ler a Enid Blyton, adorava “Os Cinco”, fui ler tudo o que um miúdo nos anos 80 lia.
Passava o seu tempo a ler ou passava muito tempo na rua?
Tenho um irmão e duas irmãs, sou o mais novo. Eu era meio quieto, passava muito tempo sozinho, a escrever as minhas coisas. Como vivia, e vivo, muito próximo da praia, gostava de ir para lá. Na minha cabeça de miúdo achava que havia uma espécie de comunhão com a natureza, ler num espaço livre e bonito parecia que ganhava uma solenidade, era quase uma coisa espiritual.
“Já aparecerem com bebés a quem deram o nome Valter exatamente por causa de ‘O filho de mil homens'”
Quando foi para a a faculdade, acabou por decidir estudar Direito. Porque não escolheu um curso ligado à Música ou à Literatura?
Era muito tímido, se me mandassem tocar ou cantar alguma coisa em público eu desmaiava. Cheguei a ponderar a Literatura, mas passava tão perto do que queria fazer, tinha medo de me transformar e eu não queria de ser condicionado.
Chegou a exercer Direito. Estava convencido de que queria ser advogado?
Quando entrei pensei que ser advogado seria uma coisa boa, que iria defender coisas em que acreditava, ajudar pessoas. No segundo ano já tinha percebido que nunca poderia ser advogado, mas o curso era uma mais-valia irresistível. O Direito é exatamente sobre o que está escrito e o que é possível ler, é tudo uma questão de rigor de escrita e de literatura.
Pouco tempo depois decidiu desistir e teve de dar essa notícia aos seus pais, que lhe pagaram o curso numa universidade privada.
Foi horrível.
Ainda se lembra do que eles lhe disseram quando lhes explicou que não queria ser advogado?
Primeiro a minha mãe ia passar-se e eu comecei logo a chorar. Eu era muito comedido e nunca chorava diante dos meus pais, achava que essa fragilidade exposta os faria sofrer, precisava de lidar com os meus assuntos de forma discreta. Mas naquele instante, perante a força de dizer que depois de cinco anos a pagar propinas numa universidade privada eu, ainda assim, não ia querer ser advogado, desatei imediatamente a chorar e a minha mãe percebeu logo.
Entendeu que não era um impulso?
Percebeu que não era uma tolice qualquer, que era quase uma questão de sobrevivência. Eu estava quase deprimido, era tão sufocante para mim prosseguir naquela atividade que eu estava a ficar apático, não tinha vontade de fazer rigorosamente nada. As pessoas diziam-me que eu estava deprimido e eu achava que não. A verdade é que no momento em que se criou um apaziguamento com a questão, voltei a ter vontade de tudo.
Nessa altura os seus pais já sabiam que escrevia?
Sim, quando eu estagiei já tinha publicado o primeiro livro de poemas. Tinha 24 anos. No segundo ano de estágio publiquei o segundo livro.
E o seu pai, o que lhe disse?
O meu pai gostava de ler coisas. Embora não fosse um leitor de poesia, era muito ponderado, conferia muita importância às coisas. Lembro-me de ele ficar muito admirado.
Não estava à espera?
Não estava à espera e não conseguia propriamente descortinar todos os sentidos dos poemas. Ele acabava por discutir comigo coisas como se quisesse entrar no universo da escrita, entender efetivamente quem eu era. Lembro-me de ele dizer que achava que o que eu estava a fazer era muito importante, era a forma que ele tinha de expressar a admiração, o espanto. Lembro-me de ele dizer à minha mãe, com um livro na mão: “Isto que aqui está é muito importante.” É bonito.
É melhor do que qualquer elogio vindo de fora?
É, é.
Quando venceu o prémio Saramago, em 2007, que influência é que o próprio Saramago, mais do que o prémio, teve em si?
O discurso que ele fez na entrega do prémio foi verdadeiramente o prémio. Mais do que os 25 mil euros, que era importante para mim que vinha de começar e não vendia muitos livros, de repente ganhar aquela dinheiro era fortíssimo. Mas quando ele falou, tive imediatamente a impressão de que as palavras dele eram verdadeiramente o prémio. Foi de tal maneira, que coloquei o cheque numa espécie de mesa de apoio, falei e fui lá para fora dar abraços às pessoas. Foi a Pilar que me trouxe o cheque e disse: “Valter, tens de tomar conta disto.” Eu que estava completamente falido, devia estar doido para me esquecer do cheque assim. O que o Saramago disse é um tesouro até hoje e vai ser sempre, não se esgota.
Qual foi exatamente a primeira ideia que teve para este livro?
O primeiro instante em que eu descubro o livro tem que ver com a vontade de construir uma história sobre um artesão, eu queria falar sobre alguém que vive da manualidade. Isso surgiu talvez há quatro anos. Podia ter escrito sobre um artesão de qualquer lugar do mundo que não o Japão, mas no momento em que eu decido que o meu livro seguinte, depois de “A Desumanização”, havia de ser sobre a questão do artesanato, imediatamente me ocorre o Japão. Eu vou adiando ideias e cenários para os livros, há muitas coisas que me impressionam e que parece que ficam à minha espera, eventualmente sou eu que estou à espera de ter tempo para elas, mas tenho a impressão de que são coisas que marcam a minha vida, a minha curiosidade, que me instigam ou assustam e vão estando sempre no meu imaginário.
Já tinha estado no Japão?
Sim, uma vez, e depois voltei para fazer umas perguntas. Ocorreu-me imediatamente o universo dos leques, que lá não têm feminino nem masculino, é uma coisa para todos, que até confere nobreza a quem o carrega. É maravilhoso todo o imaginário dos samurais ferocíssimos, guerreiros, másculos, mas que tinham leques como se carregassem verdadeiras jóias de homem. Essa visão distante da nossa, que temos os leques como um objeto profundamente feminino, atraiu-me muito. É quase uma provocação soft, quase uma provocação por ternura sem querer agredir ninguém.
Este romance, e todos na verdade, tem uma escrita muito poética. Tudo isso é natural ou é um exercício que vem da poesia?
Acho que já não saberia escrever sem essas manipulações enfeitadas da linguagem. Até os meus emails correm o risco de parecerem coisas delirantes por causa dessa pulsão criativa. Gosto que as respostas sejam indutoras de todos os sentidos, conferir às palavras algo que elas não quereriam dizer. Sem dúvida que vem da minha oficina de poesia, o meu tempo a ler e a escrever poesia. Na verdade, nunca esperei ser escritor, esperava ser poeta. Hoje creio que a poesia me acontece dentro das histórias. Muitas das passagens podiam ser desmontadas em verdadeiros poemas. Gosto que seja assim, que existam livros cujo objetivo seja mais do que descobrir se a donzela casa. Se o livro trouxer uma linguagem encantatória, mesmo que o destino da donzela seja triste, talvez tenhamos ficado conquistados por ele.
“Lembro-me de o meu pai dizer que o que eu estava a fazer era muito importante”
Também é uma forma de escrever poesia e chegar a mais pessoas?
A poesia é muito impaciente e normalmente não admite repetições. Na prosa podemos fazer sequelas e as pessoas até gostam. O “Harry Potter” deve ter 752 volumes e a verdade é que continua a vender e as pessoas querem ler mais sobre aquele universo. O leitor de poesia talvez esteja à procura de uma originalidade, ou pelo menos o efeito de uma originalidade aparente, gosta de estar no risco de entender. O leitor comum da prosa talvez procure mais uma trama, mais perto do entretenimento. A poesia está mais ligada ao trabalho de ler.
A história passa-se no Japão. Que tipo de pesquisa e viagens fez?
Quando fui já tinha sobretudo as personagens principais, o Itaro, o Saburo, a criada. Mas eu precisava das evidências, de ver, e foi muito importante visitar o último velho artesão de leques do Japão. Este leque japonês, que está mais ou menos reproduzido na capa do livro, é feito manualmente e está a desaparecer. Só existe um senhor com 80 anos, que vive perto do Monte Fuji, e que ainda o faz. Foi fundamental para mim observar para depois valorizar tudo o que está em causa nos leques, como a relação com os bambus.
Mesmo que não entendesse o senhor muito bem. Explica no livro que lá tinha uma intérprete consigo que não traduzia quase nada.
Ela ficava fascinada a ouvir, suspirava e dava gritos de alegria. Eu perguntava o que ele estava a dizer e ela não conseguia reproduzir. Eu perguntava: “Mas foi lindo?” E ela dizia: “Foi.” Ela não conseguia interrompê-lo, era quase um ritual de uma cordialidade muito específica.
Ainda não publicou nenhuma personagem parecida consigo, feita à sua imagem, mas já a criou?Talvez um dia publique uma autobiografia, que conte sobretudo o tempo da minha infância. Vivi uma infância muito fantasiosa, impressionado com coisas que julgava que existiam. Foi muito formadora para ser o escritor que sou, com alguma fantasia nos meus romances. Por isso talvez um dia conte a história dessa infância, que por mais que eu envelheça não se apaga. É como um alicerce para a pessoa que sou.