E ao terceiro dia, o Super Bock Super Rock serviu algo completamente diferente ao público português, habituado à hegemonia do rock nos cartazes dos grandes festivais nacionais. A aposta no hip hop foi certeira: a lotação esgotou, o público vibrou e a Meo Arena finalmente viu preenchidos quase todos os espaços vazios da sala, algo que ainda não tinha acontecido nesta edição do SBSR. Os portugueses — e principalmente os adolescentes, que compunham grande parte dos milhares presentes no último dia — estão sedentos por mais hip hop e os organizadores vão certamente ficar atentos.
Antes das rimas e das batidas tomarem conta do recinto, o calor acolheu os californianos FIDLAR, que chegaram de punk rock em riste para lançar a primeira festa do dia. Houve crowdsurf, ténis pelo ar e copos de cerveja a voar em direção ao palco, que por poucos centímetros não acertaram em cheio no vocalista Zac Carper. “Que se lixe, é para partir tudo”, revelou a expressão dos quatro membros, enquanto sacavam de “West Coast”, single de “Too”, lançado em 2015 e aclamado pela crítica. O som hiperativo dos FIDLAR levou toda a gente numa louca viagem ao final do século e início dos 00’s, numa altura em que bandas como Millencolin, New Found Glory ou até os mais populares blink182 faziam parte da playlist de qualquer adolescente.
No interior do Meo Arena, no palco Super Bock, aguardava-se com antecipação o regresso dos Orelha Negra, armados com temas novos, prontos a serem testados nesta prova de fogo. Apagam-se as luzes para se acenderem de imediato: atrás de um enorme pano branco que cobria o palco desvendavam-se as silhuetas de Sam, Fred, Francisco Rebelo, João Gomes e Cruzfader. O público hesitou enquanto as novidades do alinhamento apalpavam o terreno. O regresso ao passado é feito com “Throwback” e mais tarde com “M.I.R.I.A.M.”, cujo impacto na plateia rivalizou com as pequenas homenagens ao hop hop português, entre pequenos trechos de temas dos portuenses Mind Da Gap. Entre samples, desvendaram-se vislumbres de históricos como Wu-Tang Clan ou Mobb Deep. Ainda assim, claramente insuficiente para espalhar a festa da primeira fila às bancadas. Até a ovação final foi tímida.
“Nunca se viu um grande festival com tanto hip hop e com tanta qualidade.” Capicua estava visivelmente feliz por ter conseguido roubar meia plateia aos pesos pesados do Meo Arena. E não veio sozinha. Foram seis as Marias que se juntaram em palco para festejar o hip hop no feminino. O tema não podia ser outro: “Maria Capaz”. Fim deste interlúdio — os dinossauros estavam a dirigir-se para o palco Super Bock.
Uma mesa, um DJ, dois MC. São old school e não têm paciência para modernices: “Parem a música. Não tocámos enquanto não baixarem a porcaria dos telemóveis. Querem uma festa? Então pousem isso e levantem os braços.” O público sorriu. Eles não estavam a brincar. “Estamos a falar a sério. Assim não tocámos.” Os sorrisos transformaram-se em esgares apreensivos e, de forma obediente, os telemóveis foram guardados nos bolsos. A festa continuou com constantes interrupções: interagiam com o público, promoviam desafios entre os dois lados da plateia. Entre tanta conversa, Posdnuos, Dave e Maseo esqueceram-se que nem só de “put your hands up in the air” se fazem os bons concertos.
Nesta avalanche de hip hop, houve tempo para uma viagem ao passado com Rui Reininho e os GNR no palco EDP. Uma plateia de faixa etária acima da média para este terceiro dia recebia enternecida os temas de “Psicopátria”, o disco de 1986 que os portuenses fizeram questão de tocar na íntegra. Reininho cedia à derrota na batalha dos números: “A gente já vai ver o Kendrick, os niggas e todos esses motherfuckers.” Do lado A ao lado B, tocaram interlúdios, temas perdidos no tempo e êxitos como “Efectivamente”. No final, um docinho para todos os despreocupados com o hip hop no palco principal. “Sabem como é, somos uma banda pequena, não temos muitos temas por onde escolher”, ironiza. Da bateria surgem as primeiras batidas de “Vídeo Maria”. Os GNR violaram as próprias regras, largaram “Psicopátria” e lançaram-se na heresia. O público aplaudiu e atirou-lhe água benta. Estavam perdoados.
Perto da meia-noite, o recinto parecia um deserto. Sobravam os promotores, os seguranças e os homens do lixo. O Meo Arena preparava-se para a chegada de Kendrick Lamar, o nome mais forte e mais aclamado do hip hop internacional. Pela primeira vez, o palco Super Bock quase rebentou pelas costuras. Em 2014, o rapper de Compton chegou discreto ao Porto, para atuar no NOS Primavera Sound. Dois anos depois, vários Grammy no bolso e outros tantos êxitos nas tabelas, a expectativa tomava outras proporções. Era o rei que aí vinha e ninguém estava desprevenido.
O rapaz da nova escola não esqueceu o shout out aos De La Soul, pegou nos temas que todos conhecem e deu início a uma festa que conseguiu a proeza de levantar o pessoal confortavelmente sentado no segundo anel da arena. Jorravam lágrimas nas filas da frente, abanava-se a cabeça no fundo da plateia, entoavam-se em coro os refrões. Entregou de forma irrepreensível e calculada aquilo que público queria ouvir. Nem mais, nem menos.
Mais do que assistir a um espetáculo que ficaria para a história — não ficou, longe disso —, o público estava ali para admirar a estrela do momento, o rei. Mais importante do que os temas que saíram das colunas, é a marca deixada por Kendrick nos festivais portugueses. Por ele e por todos os artistas que fazem do hip hop a sua forma de vida. O lotado terceiro dia do Super Bock Super Rock é a prova de que o género pode (e deve) ser um fator a ter em conta nos anos e cartazes que se seguem. Se os organizadores estiveram atentos a este SBSR, mais dias dedicados ao hip hop chegarão nos próximos anos. Só não nos tirem o rock.