Escolheu uma protagonista feminina para os seus livros e assina como M.J. É por isso que muitos leitores acham que ele, que na verdade se chama Matthew, é uma mulher. O autor não se importa com a confusão, que foi uma escolha deliberada. E, afinal, J.K. Rowling e E.L. James “safaram-se bem”.
Durante mais de 15 anos, o escritor inglês trabalhou como guionista e produtor em televisão e só perto dos 40 é que teve coragem para escrever o primeiro livro — que nem sequer teve coragem para mostrar à mulher. As ideias, acumuladas na sua cabeça durante décadas, fizeram com que em menos de dois anos editasse cinco obras (“Um, Dó, Li, Tá”, “A Casa de Bonecas”, “A Vingança Serve-se Quente”, “À Morte Ninguém Escapa”, editados em Portugal pela Topseller, e “Little Boy Blue”, ainda sem tradução”). A personagem principal é sempre a mesma, Helen Grace, uma detetive solitária que anda de mota e persegue serial killers, enquanto lida com os seus próprios problemas.
O interesse de M.J. Arlidge por este universo surgiu quando tinha apenas dez anos. O pai era procurador e trabalhava numa série de casos de homicídios. Esquecia-se da porta do escritório aberta e o filho ia espreitar as imagens das cenas de crime, claro.
Os filhos (Chloé, de oito anos, e Alex, de seis) já lhe pediram várias vezes para escrever histórias que eles pudessem ler mas o autor sente que ainda tem demasiadas coisas sobre Helen Grace para contar. Os leitores agradecem — e a crítica também, que até o compara ao escritor Jo Nesbo —, já que os livros são bestsellers em todo o mundo. M.J. Arlidge viu a prova disso na Feira do Livro de Lisboa — onde esteve esta sexta-feira, 10 de junho —, e onde tinha à sua espera fãs portugueses, mas também pessoas do Brasil e até da Venezuela.
À NiT falou ainda da adaptação para televisão que está a ser desenvolvida pela BBC e de como, por incrível que pareça, prefere não se envolver no guião. Leia a entrevista completa
Porque é que escolheu ter uma protagonista mulher?
Há vários motivos. Em parte porque parece estar na moda, muitas das investigadoras agora são mulheres, um pouco como a Elizabeth Salinger na televisão e séries como “The Bridge”, parece haver uma nova geração de mulheres lutadoras contra o crime. Mas também porque prefiro escrever sobre mulheres, acho-as mais interessantes do que os homens, tanto na vida como na ficção. Os homens são como cães, são relativamente simples, na verdade. Podem tentar parecer sofisticados mas é bastante óbvio o que eles querem. As mulheres são mais complexas e difíceis de ler, em parte talvez por serem mais críticas de si próprias. Gosto de escrever sobre elas porque têm mais camadas. E como eu assino apenas com as minhas iniciais [M.J.], muitas pessoas acham que sou uma mulher. Nos sites de fãs escrevem coisas como: “Adoro a escrita dela, acho-a ótima.” É um grande elogio.
Assinar apenas com as iniciais foi uma escolha propositada?
Quando fizemos o primeiro livro, “Um, Dó, Li, Tá”, a minha agente disse-me: “Quando o entregarmos aos editores, vamos ser neutros no género.” 95% de quem o ia ler nas editoras eram mulheres e inconscientemente, se soubessem que eu era um homem, podiam pensar: “Aqui está um tipo a tentar escrever sobre uma mulher, uma detetive, e não percebe nada disto.” Deixámos o mistério no ar e, ao mesmo tempo, funcionou para a J.K. Rowling, a E.L. James e elas safaram-se bem. Nos livros não dou informações pessoais sobre mim, não têm agradecimentos no início e até as biografias no final não dizem se sou homem ou mulher [nas edições portuguesas, pelo contrário, até há uma foto do autor]. Quis deliberadamente ficar para trás e deixar a Helen dominar os livros.
“Eu ia lá [ao escritório do pai] e encontrava fotos explícitas de cenas de crime”
Quando está a escrever, pede conselhos à sua mulher ou a alguma outra mulher?
Nem por isso. Eu sou o mais novo de quatro irmãos e tenho duas irmãs, talvez esteja habituado a estar rodeado de mulheres. A única pessoa com quem troco ideias é a minha agente, que tem 28 ou 29 anos, ela é a primeira pessoa a ler as histórias. Às vezes diz-me que tenho de mudar alguma coisa que não está muito acertada mas na maioria das vezes acho que acerto.
Quando se encontrou com os editores da Penguin [a editora britânica], falou-lhes logo de ideias para os sete primeiros livros de Helen Grace. Durante quanto tempo tinha andado a pensar nessas histórias?
Como comecei a escrever relativamente tarde, porque tive outro emprego durante 15 ou 20 anos, tinha coisas guardada que nunca tinha escrito, muitas ideias. Quando me encontrei com eles, sabia que assassinos é que a Helen podia perseguir nos próximos anos e queria mostrar-lhes que isto tinha potencial para ser uma coleção duradoura. O Inspector Rebus já tem 20 livros. A Helen é uma mulher forte, também consegue lá chegar.
Tem um número total de livros em mente para esta coleção?
Não, estou a adorar escrever sobre a Helen. Sinto que tanto ela como Charlie fazem parte da minha família e enquanto me continuar a entusiasmar, vamos em frente.
E seja quando for o final, já sabe como vai terminar a história de Helen Grace?
É uma pergunta interessante, nunca me perguntaram isso antes. Não sei bem, não quero pensar muito nisso. Há muitos serial killers em Inglaterra, não sei. É um pensamento assustador, ainda não quero pensar no último momento da Helen.
Mas é verdade que começa sempre por escrever o final dos livros?
Há muitos livros que lemos e nos apercebemos de que o autor não sabia bem qual seria o final quando começou a escrever, inventa qualquer coisa, o que é muito insatisfatório se passámos 500 páginas a ler aquela história. Para mim, o fim é o objetivo de toda a história, é o clímax, por isso começo aí e depois ando para trás.
Os seus capítulos são sempre muito curtos, como se fossem páginas de um guião. É propositado para manter o ritmo de leitura?
Comecei a escrever estes livros quando os meus filhos eram pequenos e a maioria das ideias surgiram à noite, quando eu estava exausto, eram duas da manhã e estava demasiado cansado para escrever capítulos grandes. Eu escrevo como se fossem argumentos e, nesse caso, se queremos manter o ritmo, temos de estar sempre a cortar, a passar de umas personagens para outras e cada vez que regressamos, a outra história avançou. Tento manter esse estilo para que as pessoas não se aborreçam. A ideia para “A Casa de Bonecas” [publicado em Portugal em novembro de 2015], por exemplo, surgiu durante umas férias com amigos. Os miúdos querem sempre dormir juntos mas sabemos que, a dada altura da noite, um deles vai acordar, depois todos os outros vão acordar e é a última coisa que queremos. Eu deixava-os adormecer e depois ia buscar a minha filha mais velha, a Chloé, e voltava a colocá-la na cama dela. Fiz isso umas quantas vezes e apercebi-me de que todas as noites ela adormecia numa cama e acordava numa diferente. Ela nunca disse nada mas numa dessas noites pensei: “Como seria estranho para um adulto adormecer num sítio e acordar noutro.” Às vezes os nossos filhos, apesar de nos cansarem, também são a fonte de inspiração.
“Comecei a escrever quando os meus filhos eram pequenos, estava demasiado cansado para capítulos grandes”
Ela faz-lhe perguntas sobre os livros?
Tem oito anos agora e está sempre a tentar ler os livros. Inicialmente começámos por lhe dizer que eram sobre polícias e ladrões mas agora ela sabe que são sobre assassinos. Sempre que escrevo um livro novo, faz uma careta e diz: “Suponho que este é sobre mortes outra vez.” Mas ela gosta do facto de eu ser escritor, gosta de ver os livros na estante. Aos sábados às vezes fazemos um jogo em que pegamos num pouco de sumo de cereja, despejamo-lo algures e fingimos que é a cena de um crime. A Chloé tira fotos e começa a escrever o relatório. O Alex, o meu filho mais novo que tem seis anos, pega num saco de plástico transparente e coloca as provas no interior. Estou a ensiná-los a lidarem com uma cena de crime, é um jogo pouco comum mas eles gostam.
Também foi influenciado por uma série de casos que o seu pai, que era procurador, levou a tribunal.
Ele trabalhou numa série de homicídios e houve um bastante famoso, um tipo chamado Jeremy Bamber que matou os pais, a meia-irmã e os filhos dela e fez parecer que os crimes tinham sido cometidos pela meia-irmã, que depois se teria suicidado. Ele safou-se durante uns meses mas depois a polícia percebeu que ele afinal era o responsável. Lembro-me de me ter marcado por ter sido alguém a cometer um crime horrendo e a incriminar outra pessoa, apenas devido a problemas familiares e para ficar com a herança. O meu pai era bastante descuidado a fechar a porta do escritório, eu ia lá e encontrava fotos explícitas de cenas de crime. Encontrei umas de pessoas degoladas por uma garrafa cortada bastante assustadoras.
Não tinha pesadelos? Quantos anos tinha nessa altura?
Não, mas a realidade é bastante menos glamourosa do que um filme ou uma série. Devia ter uns dez anos.
Foi aí que começou a escrever histórias ligadas ao universo do crime?
Acho que aí escrevia coisas mais aventureiras. É precisa muita confiança para escrever, é preciso ter coragem. Eu demorei algum tempo mas quando cheguei aos 40 decidi que não ia esperar mais. Escrevi o primeiro livro em segredo, nem sequer o mostrei à minha mulher. Depois mostrei-o a uns agentes e quando tinha agentes suficientes a quererem o livro, percebi que devia estar aceitável. A minha mulher também não gosta de crime e ficou surpreendida, portanto achei que era bom.
Em menos de dois anos publicou cinco livros. Já tinha vários escritos ou escreve cada um em tempo record?
São todos novos, levo cerca de dois meses a fazer um plano e dois meses a escrever a primeira versão. São quatro, cinco meses no total. Como os planeio, sei exatamente o que quero quando estou a escrever, às vezes consigo cinco mil palavras por dia.
Quando termina um livro, sente-se aliviado ou triste?
É um misto de liberdade e um pouco de tristeza. Afasto-me durante dois dias e volto a ler e como, já me esqueci de alguns pormenores que escrevi, volto a sentir-me empolgado.
Está a escrever algum livro neste momento?
Acabei há pouco o sexto volume, portanto tirei umas férias curtas da Helen, mas vou começar o próximo brevemente. O que estou a fazer também, apesar de ser só em formato de e-book, é escrever prequelas sobre a adolescência da Helen. Já foi lançado um, é engraçado voltar aos anos 90, estou a gostar.
Não tem medo de o facto de publicar tantos livros em pouco tempo se virar contra si? Não tem receio de perder a inspiração?
Eu gosto do desafio, quero continuar enquanto conseguir. Eventualmente vou ter de abrandar mas também é bom ver vários livros nas estantes das livrarias, assim temos uma presença forte.
“Estou entusiasmado [com a série] mas tudo depende se a Charlotte Gainsbourg sabe andar de mota”
Já tem outras histórias na cabeça que não tenham nada a ver com um universo policial?
Um pouco, mas a verdade é que gosto de crime, de thrillers. A certo ponto acho que vou fazer algo que não tenha nada a ver com a Helen e gosto do estilo a que em Inglaterra chamamos “domestic noir”, que são histórias como “Gone Girl” ou “A Rapariga no Comboio”, são pessoas normais numa história cheia de suspense. Talvez vá por esse caminho mas ainda tenho tantas ideias para a Helen que seria estranho não as fazer agora, enquanto me sinto entusiasmado.
Já há planos para uma adaptação para o cinema ou para a televisão?
Neste momento, a história está a ser adaptada para a BBC, como um drama dividido em quatro partes. Não sou eu a escrever o guião porque não quero refazer algo que já escrevi uma vez mas no final do ano já se deverá saber se o projeto avança ou não.
Trabalhou em televisão durante mais de uma década. Como é que se consegue afastar deste projeto?
Do meu bebé? Pois, acho que é mesmo pelo facto de ter trabalhado em televisão, onde a última coisa que queremos é um autor a olhar por cima do nosso ombro e a apontar os defeitos. Para já estou muito calmo.
O resultado pode não corresponder a nada daquilo que imaginou.
Acho que é um risco que corremos mas, para ser sincero, também sinto que investi tanto nestes livros que se fosse eu a fazê-la, e se a adaptação para televisão corresse mal, seria um fracasso demasiado grande. Assim protejo-me um pouco. Em “Um, Dó, Li, Tá” há capítulos escritos na primeira pessoa, pensamos que é a Helen mas é, na realidade, a irmã. Em televisão há esse desafio para resolver, que vou deixar para eles.
Que atriz imagina no papel de Helen Grace?
Há muitas discussões sobre o aspeto da Helen, há quem diga que é loira, há quem diga que tem o cabelo preto. Os produtores gostam da Charlotte Gainsbourg, que é francesa mas estudou em Inglaterra, do carisma e da beleza pouco comum dela. Acho que ela também nunca fez televisão e os espectadores ingleses vão ver a Helen quando olharem para ela, e não apenas uma atriz famosa. Estou bastante entusiasmado mas tudo depende se ela sabe andar de mota ou não [risos].