Os meios de comunicação social têm como missão reportar os factos e a verdade. Mas quando o fazem, por vezes alteram ou influenciam a própria realidade pelo simples ato de o fazerem. Esta dinâmica entre os órgãos de comunicação e a sociedade é constante e está em destaque em relação ao tema concreto dos crimes mediáticos na nova série documental da Netflix, “Trial by Media”, que estreou a 11 de maio.
A produção tem seis episódios — cada um com cerca de uma hora — e centra-se em seis casos que foram famosos nos EUA, um país com alta criminalidade e onde esta questão é bastante pertinente.
Nos Estados Unidos da América existe um canal chamado Court TV — cujo fundador, Steven Brill, é um dos produtores executivos desta série, ao lado de George Clooney e do comentador da “CNN” Jeffrey Toobin, que escreveu um livro sobre o caso de O. J. Simpson, que depois foi adaptado à televisão. A Court TV transmite e cobre sessões de tribunal de casos mediáticos, quase como se fossem provas desportivas.
Os advogados não estão apenas a apresentar uma teoria ou a contar uma história para o júri, estão a fazê-lo para o “tribunal” da opinião pública, através dos meios de comunicação. E às vezes a perceção que o público tem das coisas é mais importante do que os próprios factos. Por isso mesmo, a comunicação social tem o poder de influenciar vereditos e a reação do público aos mesmos.
Como um advogado explica em “Trial by Media”, isto não é sobre a lei, é sobre quem consegue contar a melhor história. Ironicamente, esta série que retrata a forma como os julgamentos de crimes podem ser empacotados como entretenimento (e os malefícios que podem vir daí) é ela própria também um produto de entretenimento da Netflix.
Apesar de todos estes serem casos relativamente conhecidos nos EUA, nenhum será muito famoso no resto do mundo — não se fala, por exemplo, de processos com a enorme dimensão que teve a acusação de homicídio de O. J. Simpson, por exemplo.
Um dos capítulos centra-se no “Talk Show Murder”, como ficou conhecido um homicídio de 1995 relacionado com o “The Jenny Jones Show”, um programa de televisão em que os concorrentes, que se conheciam pessoalmente, revelavam segredos, o que resultava nalguns conflitos. Um homem revelou que tinha uma paixão pelo seu amigo heterossexual, que só foi ao programa porque lhe tinham dito que tinha um admirador secreto, apesar de o seu género nunca ter sido revelado.
Dias depois, o homem matou o seu amigo gay, o que levou a várias questões em relação à culpa e responsabilidade do programa — que nunca chegou a transmitir este episódio. O julgamento foi transmitido na Court TV, onde se tornou também ele próprio um programa mediático, até porque Jenny Jones foi uma das testemunhas.
Outro dos casos é o de Bernard Goetz, em 1984, que ficou conhecido como o “Subway Vigilante”. Goetz alvejou quatro adolescentes afro-americanos no metro de Nova Iorque, e depois alegou que era legítima defesa, numa altura em que a segurança na cidade e em específico no metro era muito criticada — e em que as tensões raciais fervilhavam. Goetz dizia que o tinham tentado assaltar, os jovens explicaram que estavam apenas a pedir dinheiro.
Os meios de comunicação terão sido fundamentais para que Goetz fosse visto pela opinião pública — branca e de classe média — como alguém que não tinha cometido um crime assim tão grave. Muitos até acreditavam que ele era um herói. Foi totalmente absolvido dos crimes de tentativa de homicídio e agressão, apesar de que, em ações judiciais ao longo dos anos, tenha ficado a dever dinheiro a uma das vítimas (que ficou paraplégico e com danos cerebrais para o resto da vida), o que o deixou falido.
Depois há o caso do “Big Dan’s”, que aconteceu num bar em New Bedford, no estado de Massachusetts. Uma mulher de 21 anos foi violada por vários homens numa mesa de snooker, enquanto outros assistiam. O julgamento foi transmitido em direto na televisão e a vítima nunca pôde manter a sua privacidade e anonimato. O brutal interrogatório a que foi sujeita por parte dos advogados de defesa foi visto por milhões de americanos e muitos dos intervenientes do processo alegavam que ela tinha tido alguma culpa no processo.
Há ainda o caso do homicídio do imigrante africano Amadou Diallo, que foi assassinado em 1999 por quatro agentes brancos da polícia de Nova Iorque no seu apartamento, com 41 tiros — um caso que também envolveu tensões raciais e que culminou numa narrativa na opinião pública que simplesmente não coincidia com as provas e com o que realmente tinha acontecido.
Há entrevistas com advogados, jornalistas, ativistas e os produtores da série documental ficam sobretudo atrás das câmaras — exceto no caso de Jeffrey Toobin, que dá um depoimento sobre o caso de Amadou Diallo, homicídio que cobriu enquanto jornalista para a revista “New Yorker”.
Também há alguma esperança na série. Apesar de muitos destes serem crimes horrendos, que ainda se tornaram piores tendo em conta a perceção injusta da opinião pública, também despoletaram movimentos cívicos e ativistas de promoção da igualdade e da justiça social, que também foram importantes.
Em geral, a crítica internacional tem apontado várias falhas a “Trial by Media”, apesar de sugerir que é uma série que os fãs de histórias de crime real vão gostar. Há elogios à edição elegante e à pesquisa que foi feita, mas dizem que o projeto não consegue responder às perguntas que coloca, e que não há uma grande ligação entre episódios, sem uma linha argumentativa coerente. Ou seja, não há uma visão ou ideia concreta por trás desta produção, não há propriamente uma mensagem específica a transmitir.
No caso específico da “Mashable”, Alison Foreman salienta que os casos retratados são sobretudo antigos, sem se terem focado em investigações que tenham tido a influência dos novos media, como as redes sociais, o que poderia ter sido uma perspetiva interessante.
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