Televisão
“The Keepers”: o escândalo sexual e a freira assassinada que não vão deixá-lo dormir
A nova série documental da Netflix consegue ser mais viciante e sinistra do que “Making a Murderer”. A NiT viu os sete episódios e garante-lhe que é obrigatório.
Abbie Schaub e Gemma Hoskins investigam o caso há uma década
Se “Making a Murderer” e “The Wire” se fundissem, daria qualquer coisa como “The Keepers”, a nova série documental disponível na Netflix deste sexta-feira, 19 de maio. Aqui nada é ficção, mas há detalhes tão sinistros que bem podiam fazer parte do guião mais negro da televisão.
Quem matou a irmã Cathy Cesnik? Esta é a primeira questão colocada no projeto que Ryan White demorou três anos a concluir. Contudo, este é só um grão de areia no gigantesco caso que junta abusos sexuais, polícias corruptos e uma igreja sem qualquer sentido de justiça.
Os setes episódios começam por apresentar a freira que dava aulas de Inglês na Archbishop Keough Highscool, uma escola de Baltimore só para raparigas com condições acima da média para a época e onde todos queriam colocar as filhas. Em novembro de 1969 desapareceu. O seu corpo foi encontrado vários meses depois e o culpado nunca foi encontrado. Anos mais tarde, na década de 90, percebeu-se que ela sabia dos abusos sexuais no estabelecimento e que se preparava para ir à polícia.
Depois de colocada esta primeira peça do puzzle, “The Keepers” apresenta-nos as vítimas e as suas histórias são tão hediondas e gráficas que até quem está deste lado do ecrã tem dificuldade em não ficar mal-disposto. Em muitos momentos das gravações, Ryan White não intervinha, deixava as coisas acontecerem, nem que fosse alguém a olhar simplesmente para a câmara ou a chorar de repente. Tudo isso torna as pessoas mais humanas e os seus traumas difíceis de ouvir sem despertar em nós raiva e incompreensão.
À cabeça de uma rede que parecia não ter fim estava um padre, Joseph Maskell, capelão e conselheiro da escola. Chamava-as ao gabinete para violá-las e para permitir que outros homens, incluíndo polícias, fizessem o mesmo. O sistema judicial estava, por isso, corrompido; o mesmo acontecia com a Igreja Católica que, à semelhança do que se passa na história verídica de “O Caso Spotlight”, tinha noção do que se estava a passar e nada fazia.
Aqui, as vítimas são menosprezadas, levadas a crer que não têm qualquer credibilidade e que merecem o que lhes aconteceu. Por outro lado, “The Keepers” faz lembrar a série “The Wire”, só que neste caso os poderosos que se protegem e corrompem os outros são figuras reais. Este ciclo parece impossível de combater.
“Making a Murderer”, a outra série documental da Netflix que tem servido para comparar este projeto, chamou a atenção para muitas lacunas no sistema judicial norte-americano. Foi uma série viciante porque até ao fim ora acreditávamos na inocência de Steven Avery, ora na sua total culpa. Desta vez tudo nos dá ainda mais a volta ao estômago porque estamos a falar de abusos a adolescentes. E de dezenas de casos.
A NiT viu os sete episódios e, sem spoilers, explica-lhe quais são os elementos cativantes de “The Keepers” e de como este projeto vai mantê-lo acordado durante a noite inteira.
Quem era Cathy Cesnik
Tinha 26 anos e juntamente com outra freira professora vivia fora da reclusão do convento. Dava aulas de inglês e todas as suas alunas a descrevem com as maiores qualidades. O seu desaparecimento e morte foi muito mais do que um crime isolado e pretendia esconder um escândalo gigantesco de abusos sexuais que acontecia dentro da Archbishop Keough.
Ryan White tinha uma ligação pessoal ao caso. A tia fora aluna de Cathy Cesnik e era uma das grandes amigas de Jean Wehner, que se revela o peão mais importante desta história e que começou por apresentar-se como anónima (ou Jane Doe).
As detetives amadoras
Não se viram durante décadas, mas o mistério da morte de Cathy Cesnik voltou a juntar Abbie Schaub e Gemma Hoskins na reforma. A primeira dedica-se a pesquisar todos os arquivos, a segunda gosta sobretudo de falar com pessoas. As duas cruzam a informação para tentarem descobrir o que realmente aconteceu à freira. Têm há dez anos um grupo no Facebook, “Justice for Catherine Cesnik and Joyce Malecki” (Malecki foi outra jovem assassinada na mesma altura), e foi através dele que chegaram a várias sobreviventes e pistas.
O empenho das duas é maior do que o de muitos profissionais. Já enviaram pedidos de informação ao FBI e a todas as entidades e mais algumas. Fizeram a ligação entre dezenas de nomes. É enternecedora a forma amadora — fazem um mapa com as pessoas importantes para a história em filtros de café — mas afincada com a qual tratam do assunto.
As vítimas dos abusos
Nos anos 90, houve finalmente um caso em tribunal contra Joseph Maskell movido por duas mulheres que mantiveram o anonimato. A primeira, Jane Doe, tinha bloqueado as memórias da infância durante anos e só começou a recuperá-las depois dos 40 anos. A família dela uniu-se em busca de outras histórias e enviou centenas de cartas a antigas alunas pedindo que quem tivesse passado por abusos semelhantes se manifestasse. As respostas inundaram o gabinete da advogada de Jane Doe mas só uma mulher avançou depois com a acusação formal. Recebeu o nome de Jane Roe e as duas fizeram questão de nunca se cruzar durante o caso para não influenciarem as recordações de cada uma.
Cathy Cesnik tinha prometido às alunas denunciar os abusos
Os agressores
Nos relatos das dezenas de vítimas que se manifestaram (entre 30 a 100) havia um nome comum: Joseph Maskell. Ele era o capelão da escola mas também o conselheiro. Chamava as alunas ao seu gabinete (muitas vezes pelo altifalante) e abusava delas física e emocionalmente, chegando a apontar-lhes armas e a fazer-lhes ameaças. “The Keepers” deixa os relatos das sobreviventes fluírem de forma tão crua que às vezes é difícil ouvir o que elas estão a contar.
O capelão era uma figura imponente e manipuladora que tinha contactos e poder em todo o lado, até na polícia. Aliás, os próprios agentes participavam nas violações, assim como outros padres, um ginecologista e homens cuja identidade continua por revelar.
O papel da polícia
Em 1969, quando Cathy Cesnik e Joyce Malecki foram encontradas mortas, nenhuma das investigações deu resultados. Nos anos 90 as acusações das duas estudantes anónimas foram menosprezadas e diminuídas. Uma série de detalhes, falta de informação e provas desaparecidas demonstraram a todos — menos às autoridades, pelos vistos — que não havia interesse em resolver nenhuma investigação e isso é provado em vários momentos de “The Keepers”. Tal como em “Making a Murderer”, o sistema judicial de Baltimore tem falhas flagrantes e propositadas e tudo aqui é ainda mais doentio, uma vez que havia várias pessoas a contarem histórias semelhantes e nunca ninguém lhes deu ouvidos, muito menos a procuradoria.
O papel da Igreja
Várias movimentações da arquidiocese de Baltimore são contadas e provam que a Igreja Católica tinha muito a esconder. Primeiro, transferiu várias vezes Joseph Maskell, cada vez que havia uma acusação iminente, e chegou a enviá-lo para uma espécie de clínica de reabilitação. Segundo o jornal “The Baltimore Sun”, desde 2011, a Igreja chegou a acordo com 16 sobreviventes pagando 421 mil euros no total.
Os culpados
Revelamos-lhe já que não adianta esperar que “The Keepers” responda às várias perguntas que coloca nos primeiros episódios mas essa também nunca foi a intenção do realizador, Ryan White.
“O que tentámos fazer foi apresentar as várias teorias para público poder decidir”, explicou em entrevista à “Vanity Fair”.
No final há ainda mais dúvidas e suspeitos e isso deixa o espectador a tomar partido dos intervenientes e a elaborar explicações durante horas. A única coisa em que podemos todos concordar é no desejo de que se faça justiça, mesmo depois de tantos anos, para as mulheres assassinadas e para as vítimas de abusos.
A possibilidade de uma segunda temporada
Com a visibilidade que “The Keepers” está a dar ao caso, é impossível que as autoridades fiquem a olhar para o lado, como se não fosse nada com elas. O mediatismo ainda antes da estreia já deu alguns frutos e em fevereiro o corpo de Joseph Maskell (que morreu em 2001) foi exumado para que fosse recolhida uma amostra de ADN. Os dados foram cruzados com uma amostra que tinha sido encontrada junto ao cadáver de Cathy Cesnik mas os resultados foram negativos.
Ainda assim, a teoria de que o padre tinha assassinado a freira com as própria mãos tinha pouca força. E apesar de parecer que o processo pode estar novamente a mexer, Ryan White já disse que não tem planos para uma segunda temporada.
“Este foi um processo doloroso para muitas das pessoas envolvidas. É esgotante para elas terem de voltar a contar partes mais horríveis das suas vidas”, explicou ao programa “E! News”.
Ryan Murphy espera, contudo, que “The Keepers” produza resultados. “Não posso dizer que não esteja empolgado para ver que respostas saem disto.” Os espectadores, que vão fazer uma maratona dos sete episódios sem sequer se aperceberem, sentem o mesmo.
Joseph Maskell, à esquerda, era o capelão da escola
nota NiT: 83%