12 horas depois de o programa ir para o ar, regressámos ao restaurante A Faia, em Alverca, para falar com o cozinheiro e gerente Mário Carvalhal — que foi a estrela do mais recente episódio de “Pesadelo na Cozinha”, transmitido na noite desta quarta-feira, 1 de janeiro, na TVI. Leia também a reportagem da NiT em que contamos a experiência do nosso jantar no espaço.
Passavam poucos minutos depois das 9h30 quando Mário estava a fazer compras para começar a cozinhar. Apesar de ainda faltar bastante para o almoço (e ainda mais para o jantar), A Faia está aberto durante todo o dia como café.
Justa, a mulher de Mário, já está a trabalhar àquela hora. Na cozinha conseguimos ver também Irene — que celebrou o 70.º aniversário na semana das gravações do programa e que recebeu dois ramos de flores do chef Ljubomir Stanisic. O empregado de mesa Gentil está na sala, a tratar do tudo o que for preciso.
É cedo mas A Faia já tem vários clientes regulares ao balcão. Enquanto tomam café, ou até algo mais forte para começar o dia, todos comentam o episódio de “Pesadelo na Cozinha” da noite anterior. Gostaram de ver A Faia na televisão e da forma como Stanisic tratou o staff do restaurante.
Mário Carvalhal também está muito feliz. “Gostei de ver o programa, foi fascinante, foram mais umas lágrimazinhas que caíram. Vi o programa sozinho, pus a esposa num lado e fui para o outro. Queria ter o meu momento”, conta à NiT, sem esconder os sentimentos. “Emocionei-me muito eu, a minha família…”
Esteve a noite inteira a receber mensagens e chamadas, de familiares e amigos que lhe queriam dar os parabéns e contar que tinham visto o programa. “Chegou a um ponto em que tive de pôr o telefone no silêncio para poder descansar.”
O responsável por A Faia já era um fã do formato e de Ljubomir Stanisic, mas nunca tinha querido inscrever-se no programa. “Eu estava sempre na primeira fila para ver o programa. Mas fazê-lo não, porque sou um bocadinho teimoso. E será que vou para ali para ser enxovalhado?” Era um dos seus maiores receios. “Mas não, não aconteceu.”
O momento que foi fulcral para o senhor Mário aceitar participar no formato — já depois de Justa ter inscrito o restaurante — foi quando vários membros da produtora Shine Iberia Portugal, responsável por “Pesadelo na Cozinha”, foram almoçar ao espaço. “Não sabia quem eles eram e foram dar-me os parabéns porque a comida estava muito boa. É como pegar num rebuçado e dar a uma criança — claro que ela fica logo toda contente. Por isso mesmo é que fiquei fascinado e gostei.”
Mário também estava com medo de não se dar bem com Ljubomir, depois do que tinha visto noutros episódios. “Tinha um bocadinho de receio, mas fui metendo a minha humildade… o que é que adiantava? Por exemplo, ele mostrou que tinha a chaminé suja na cozinha, o que é lógico. E depois de um dia de trabalho… claro que aquilo podia não ser só daquele dia, podia estar mais acumulado, mas eu não ia dizer que não, nós temos que ser humildes.”
O cozinheiro de 59 anos tinha visto os programas anteriores — e conhecia as críticas que muitos dos donos dos restaurantes faziam à conduta do chef e da equipa do programa, depois da semana de filmagens. “Também estava um pouco com medo disso, mas aquilo que saiu foi a realidade, foi a gravação que fiz, não vejo nada lá que esteja deturpado. Havia a coisa de eles colocarem baratas, ah, tinham lá necessidade disso? O homem havia lá agora de se preocupar com isso.”
Mário já era fã do formato.
Depois de ver como a relação com Ljubomir correu tão bem, Mário ainda agora se mostra surpreendido. “O que eu não estava à espera era das atitudes do chef, do amor e companheirismo que ele teve comigo. Ele gostou muito de mim e isso é um grande privilégio. Chegou até a um certo ponto em que lhe disse: eu não mereço tanto. Mas quem somos nós para dizer aquilo que merecemos ou não?”
Em relação à fotografia que Ljubomir lhe ofereceu e que está emoldurada na parede do espaço, Mário só tem a agradecer. “Foi como se fosse um grande automóvel, um grande Jaguar que ele me ofereceu. Gostei do gesto. Tudo isto foi uma experiência única, inédita.”
Mário Carvalhal fez até uma formação na cozinha do Bistro 100 Maneiras, como vimos no programa. “Tive esse grande privilégio, porque o chef é humano como nós, é uma pessoa de carne e osso. Só que nós não nos podemos fazer equivaler ao chef, ele tem outros saberes. Na parte da cozinha em que estive a fazer a formação, gostei, fui convidado a ir lá sempre quando quiser. Basta só telefonar. Do restaurante também gostei, fui bem atendido, foi uma experiência diferente. Foi servida uma refeição confecionada pelo chef e senti aquele carinho, aquele calor humano. Eu até lhe pedi para me dar um abraço.”
Diz que não tem mantido muito o contacto com Stanisic, mas que de vez em quando fala com pessoas da sua equipa — até porque o chef que lhe deu a formação também é de Alverca. “Estive na cozinha [do 100 Maneiras] só a ver, não a trabalhar. É uma cozinha que não é muito grande, mas é acolhedora, boa para trabalhar. A formação foi no Bistro. São coisas que nos deixam leves, entende?”
Mário diz que tem usado bastante o caderno que Stanisic lhe deu para tomar notas e apontar receitas — embora, diga, tenha uma grande memória. Mário explica que até se lembra perfeitamente do seu primeiro dia na escola, há mais de 50 anos. “Ele disse-me ali na cozinha que a minha idade já não me permitia que eu fixasse muitas coisas. Eu não lhe disse nada, mas aí já discordo com ele.”
Quanto à semana de gravações, Mário não esconde que foi cansativa. “Até porque não estamos habituados às câmaras — e estar ali com duas ou três a filmar a sala e apontadas para nós… não vamos dizer 24 horas, mas foram pelo menos 12 horas [por dia]. É um bocado chato porque é cansativo. Mas tudo tem um preço. E neste caso foi pela mais-valia para a casa, e é através da casa que estamos cá e que nos sustentamos.”
Desde que terminaram as filmagens que Mário tentou implementar ao máximo todas as sugestões e métodos deixados por Ljubomir. Tem sentido algum aumento na clientela desde então — mas acha que o mediatismo do programa é que vai fazer subir realmente a procura, apesar de, como explica, tudo ser um processo que demora o seu tempo. “O mês de janeiro também é fraco, e eu trabalho com muita gente do norte, que vêm em trabalho e jantam cá — mas nesta altura não vêm.”
O espaço tem menos mesas e está mais agradável.
Ainda assim, diz que este ano serviu o dobro dos jantares no Natal da média dos outros anos — e que também teve um bom feriado de 1 de janeiro, com a casa composta. “No ano passado tive um ou dois pequenos serviços no Natal. Este ano teve quatro ou cinco serviços dos grandes, tudo isso já ajudou. Agora é esperar para ver e seguir para a frente. E tentar que todo o cliente fique feliz. Quero que todos os clientes que entram aqui sejam companheiros, eu afeiçoo-me logo aos clientes. E depois chega a um certo ponto em que já tenho confiança e até o mando ir buscar as bebidas ao balcão. É isso que quero, o tipo de cliente que se sinta à vontade. Já fiz isso diversas vezes com muita gente, ‘se quer cerveja vá ali buscar’. Só há uma coisa em que não mexem: a caixa.”
Mário diz que tem usado os métodos de Stanisic para guardar os produtos e para preparar caldos e bases, mas que, apesar de ter gostado dos pratos deixados pelo chef, tem feito adaptações nos menus do dia. “Também há pratos a que estou mais habituado do que ele. Por exemplo, neste dia pôr uma feijoada à transmontano não é bom. Não é porque passaram as festas nem nada. É porque é um prato que sei perfeitamente que o pessoal que vem à noite gosta e come. E hoje eles não vêm cá. Vou fazer para quê? Hoje vou fazer umas favas com entrecosto e um esparguete à bolonhesa. O resto é tudo feito na hora. Porque são pratos que saem mais ao meio-dia e aí já não estou a seguir os conselhos dele. Não é que eu queira tirar os pratos que ele me sugeriu, que estou a seguir, mas neste caso não é o dia apropriado. Ele também me disse que era para fazer adaptações.”
O responsável pelo restaurante A Faia diz que alguns dos clientes habituais notaram as mudanças na cozinha mas que ainda não está tudo a 100 por cento. “Nem sequer a 50%. É um processo que ainda vai demorar. Este mês de janeiro também é fraco mas só lá para a frente é que vamos ver no que é que melhorámos, com as adaptações, aos poucos.”
A sala está com um aspeto renovado, com um novo serviço de talheres e toalhas, e Mário gostou das mudanças — apesar de agora ter menos quatro mesas. “Está mais organizada, está maior, está mais espaçoso e acolhedor.” Neste momento rondam os 38 lugares sentados.
A vida de Mário Carvalhal antes de A Faia
Nasceu numa aldeia do Gerês, mas só viveu lá até aos 13 anos. No entanto, costuma ir lá passar férias e diz ser uma pessoa “muito querida” na aldeia, onde vive uma irmã sua, na antiga casa dos pais.
“Saí de lá no final da escola, quase que fugi. Os meus pais eram pobres e vim para Lisboa muito novo.” Na verdade, a primeira paragem foi mesmo Alverca — Mário tinha uma irmã mais velha que vivia neste subúrbio da capital. Já faleceu, mas continuam a viver lá os seus sobrinhos.
Sempre trabalhou na área da restauração. Aos 13 anos, quando chegou a Alverca, começou por descascar batatas num restaurante local. “Como era pequeno, puseram umas grades no balcão e eu andava por cima delas, porque eu não chegava aos balcões — na altura eram mais altos.”
“Foi como se me tivesse dado um grande automóvel.”
Quando se casou pela primeira vez, foi viver para Trás-os-Montes, onde trabalhou durante 25 anos na mesma área — sempre como empregado de mesa. Depois, esteve no Algarve durante seis anos, onde passou a ser cozinheiro. “Ser empregado de mesa era a minha paixão, ainda é. A pessoa chegar, sentá-la, ter o contacto com os clientes. Dava-me prazer a fazer isso.”
Foi até chefe de sala, mas certo dia, no restaurante onde trabalhava, o cozinheiro faltou ao trabalho. “E o chefe: ‘Não temos cozinheiro, o que é que vamos fazer? Temos de fechar a porta. O que vamos fazer?’ ‘Não fecha, não, vá, empresta aí uma jaleca’. Vesti-a e fui para a cozinha. E a partir daí fiquei sempre na cozinha.” É onde trabalha há dez anos.
Mário passou por todo o País — depois do Algarve, trabalhou durante alguns anos no Porto, onde fazia serviços de catering. Depois, em 2013, surgiu a oportunidade de gerir o próprio espaço, A Faia — que já tinha 40 ou 50 anos de história.
“Estava cá um outro casal [a subalugar o restaurante]. A minha irmã, que ainda era viva, disse que os donos queriam mudar isto e convidaram-me. Eles não estavam a dar conta disto, a casa estava falida de clientes à mesma. E o difícil é levantar. Então eu fui convidado, vim e aqui estou. Passado uns dias, eu estava ali fora e estavam umas pessoas a comentar: ‘este paraquedista não vai estar aqui mais de três meses’. E já estou cá há sete anos.”
Na sinopse que a TVI divulgou do programa, o canal dizia que Mário queria levar o negócio para a frente e que Justa já tinha pensado em desistir d’A Faia, apesar de ter sido ela a chamar a equipa de “Pesadelo na Cozinha”.
“Isso tem a ver com os gostos. Tem a ver com a paixão. Eu, como disse no programa, acho que isto é uma prisão. Mais concretamente é uma cadeia de porta aberta. Mas alguém tem que a fazer. E nesse caso eu fui escolhido para isso, para mim é um privilégio. Somos figuras públicas aqui, fora do programa, estamos em contacto com o cliente. No caso da Justa, ela não gosta disto. Ela é costureira, é o gosto dela. Mas isso é como tudo, se gostássemos todos da mesma coisa o que seria do resto?”
Leia também a reportagem da NiT em que contamos a experiência do nosso jantar n’A Faia.