Está uma quinta-feira chuvosa nos arredores do centro de Vila Real, quando faltam dois minutos para a uma da tarde. Do exterior, poucos sinais indiciavam a passagem recente do furacão Ljubomir n’O Lavinas. A história tornava-se mais misteriosa ao entrarmos no restaurante que ocupa o rés-do-chão de uma moradia numa pacata zona residencial. Sala espaçosa, colorida e de ar recém-pintado, mesas cheias de homens de ar atento aos pratos que saíam a uma velocidade furiosa. Pelo negócio frenético, ninguém diria que este era um espaço em crise e em necessidade urgente da intervenção do chef sérvio. As aparências, como viemos a perceber, iludem mesmo.
“Até nem foi um dia por aí além. Por vezes chegamos a servir mais de 60 refeições ao almoço. Hoje até esteve calmo”, conta à NiT Elói Mendes, de 36 anos, já recostado ao balcão depois do serviço agitado n’O Lavinas, o espaço que foi a estrela do último episódio de “Pesadelo na Cozinha”, transmitido na TVI no domingo, 26 de janeiro.
Elói foi o responsável pela chegada da produtora Shine Ibéria, numa última tentativa de recuperar um negócio em ruínas, com rendas em atraso e inúmeros pedidos de dinheiro emprestado para pagar aos funcionários. Elói revelou mesmo que se sentia num “buraco sem fundo”. Fã inveterado do chef, prometeu à mulher Mónica que se fossem escolhidos, daria um beijo na testa ao chef. Aconteceu mesmo — a visita, não o beijo — e até a esposa e cozinheira foi surpreendida. A primeira candidatura, logo na segunda temporada, foi rejeitada porque a produção “não tinha interesse num restaurante sem empregados”. Um ano depois, chegou o tão esperado telefonema. Mesmo sem a bênção da esposa que, confessa, estava longe de ser fã de Stanisic, disse que sim.
“Tinha uma má impressão dele. Achava que era mau. Vi os primeiros programas e depois parei. Metia-me impressão ver aquilo que se via nos outros sítios, até ficava sem vontade de ir comer fora. Quando soube que vinham cá, adormecia a ver o “Pesadelo” e acordava com o “Pesadelo”. O Elói só me avisou quando estava tudo combinado. Fiquei stressada e não comi nada durante três dias. E avisei-o: ‘Quem vai ouvir sou eu que estou na cozinha’. A verdade e que foi o Elói quem ouviu mais do chef”, explica Mónica.
Homem de poucas palavras, Elói ouviu, sorriu e acenou afirmativamente com a cabeça, antes de explicar que, embora não faltem clientes à casa durante os almoços de semana, está tudo muito longe de ser um cenário perfeito — e a revolução tão desejada por produção e concorrentes tarda em fazer efeito. O problema, percebe-se imediatamente, não reside apenas na cozinha, nas receitas ou no serviço. Por detrás dos frenéticos almoços, há problemas que nem o chef pode resolver sozinho.
Um copo ou dois e uma conversa de homens
Se Mónica tem apenas palavras simpáticas para deixar ao chef, Elói tem presentes os momentos mais dramáticos e tensos das gravações. “Chamou-me alcoólico”, recorda do episódio em que Stanisic o apanhou “a beber dois Favaios” durante o serviço.
“Ficou irritado comigo, disse-me que ficava mal beber durante o trabalho. Eu expliquei-lhe que era só um bocadinho com Sumol de ananás, mas ele não gostou”, confessa. Ljubomir zangou-se e recordou a má relação que tinha com o pai alcoólico. O choque não se ficou por aí. “Disse que só me ajudava com o restaurante se eu mudasse primeiro a minha maneira de ser como pai e como marido. Que tinha que dar mais atenção à família”.
A intervenção do chef na vida privada e pessoal de Elói não foi recebida com hostilidade, embora o proprietário d’O Lavinas justifique que nem tudo é tão simples quanto o chef possa imaginar: “Investi muito dinheiro aqui e as coisas não estão a correr da melhor forma. Em primeiro lugar estou focado em pôr isto a trabalhar, porque se eu fechar as portas, a minha família vai sofrer. Eu penso assim, ele pensa de outra maneira. Não o condeno por isso. Ele lutou por aquilo que tem, mas quando o fez, se calhar não tinha mulher e filhos. Agora pode fazê-lo porque a vida dele o permite. A minha não.”
À frente d’O Lavinas há quase dois anos, o negócio teve um início aos solavancos e a estabilidade cobrou o seu preço na vida familiar de Elói e Mónica, que têm sentido dificuldades em aplicar todas as transformações e mudanças que o chef quis aplicar durante as gravações do programa. As obrigações familiares deixam pouco tempo para o fazer. Com a ajuda de apenas uma funcionária, no dia da visita da NiT, o casal teve que sair para ir buscar um dos três filhos, internado há alguns dias no hospital. A custo, encontraram algum tempo para falarem sobre a sua experiência e difícil história de vida.
Uma família às costas de Mónica
Viveram quase metade da sua vida como emigrantes na Suíça. Elói trabalhava na construção civil, Mónica nas limpezas. Uma história que até aqui poderia parecer igual à de tantos portugueses, mas que Mónica desvendou numa conversa íntima com o chef — e que comoveu Ljubomir. Abandonada pelos pais, também a família lhe virou as costas. A vida já difícil foi abalada com uma uma notícia triste. Quando a mãe de Mónica morreu, foi preciso tomar uma decisão dura.
“Eu tenho um irmão menor. Quando ela faleceu, ele tinha quatro anos e ficou a meu cargo. Chegou a ir para a Suíça, mas não se adaptou e eu também já tinha três filhos pequenos”. Presa em casa a educar as crianças e impedida de trabalhar, acabou por decidir regressar ao País. “Concluímos que se era para ganhar apenas para o dia a dia, só com um de nós a trabalhar, mais valia voltar a Portugal”, confessa.
Regressaram em 2017 para trabalhar numa pequena taberna numa aldeia da zona, isto até Elói descobrir O Lavinas, restaurante aberto em 2006 e que chegou a ser uma referência da zona, até cair em desgraça. Decidiu arriscar e lançar-se no primeiro negócio de família, apesar dos medos de Mónica. “No dia da assinatura do contrato fiz de tudo para ele adormecer (risos). Não queria mesmo nada. Já estava desiludida com o outro sítio onde trabalhei e não me queria meter noutro.”
O Lavinas era um espaço de pouca fama por altura da mudança na gestão. Sem clientes e com a imagem desgastada, mesmo sob a nova gerência, Elói sentia que a vizinhança evitava o local por achar que tudo estava na mesma: “Tive que impedir os clientes de jogarem às cartas aqui dentro, dava mau aspeto. Alguns não gostaram e não voltaram, mas foi necessário”.
Sem qualquer tipo de formação ou curso na área, tudo o que Mónica sabe de cozinha aprendeu sozinha — e nem sequer sabia fazer um simples puré. Com a ajuda de Elói no serviço de mesa, fez de tudo para voltar a atrair os clientes, hoje na sua maioria trabalhadores da construção civil, de gosto simples e preferência por pratos tradicionais a preços baixos. “Não tive uma mãe que me ensinasse a cozinhar. Faço uma cozinha de aldeia e os clientes gostam, alguns já disseram que se eu sair da cozinha, não voltam”, recorda.
Apesar de um início brusco e de um incidente que ameaçou a interrupção do programa — já lá vamos —, o chef acabou por quebrar Mónica e desvendar-lhe os segredos. “Ele não é parvo, esteve comigo na cozinha e percebeu que sou uma mulher de 29 anos com quatro crianças a meu cargo. Não tenho quem me ajude a tratar da casa, do restaurante e dos filhos”, explica.
Cheio de boas intenções, Stanisic explicou que o segredo para a cozinha estava na leitura e aconselhou Mónica a devorar livros de receitas. “Foi aí que as lágrimas me vieram aos olhos. Onde é que eu tenho tempo para ler se tenho sempre os meus filhos — têm oito, sete, quatro e dois anos de idade — atrás de mim?”
Mais do que uma remodelação da carta, dos pratos e da decoração, Ljubomir dedicou parte do tempo das gravações a tentar conciliar tarefas e obrigações do casal com o funcionamento ideal de um restaurante. Nem sempre com sucesso.
“Já me arrependi disto tudo”, confessa Elói sobre a decisão de deixar a Suíça para abrir um negócio em Portugal. “Na Suíça aproveitava o tempo, saía com eles. Chegava ao fim do mês e tinha o meu ordenado, íamos passear e almoçar fora ao domingo. Aqui não, se não trabalhar, não ganho. É uma vida totalmente diferente.”
A desistência e um chef de coração mole
Levar os participantes ao limite é uma espécie de máxima não escrita do programa. Aconteceu com Mónica, que chegou mesmo a avisar a produção que queria desistir e terminar imediatamente as gravações — tudo por culpa de um conselho do chef e de um conflito com Sónia.
“Estavam a fazer-me passar pela má da fita, a culpada de tudo. Não sei explicar. Ele não ralhou comigo, mas fiquei revoltada. Irritei-me e disse que queria acabar com o programa porque sabia que ia sofrer. Não queria fazer a entrevista. Por mim, acabava tudo ali“, conta à NiT.
Tudo aconteceu durante um dos serviços de almoço. Elói e Ranicleia levantavam os pratos das mesas e depositavam-nos na cozinha, sem os limpar. O chef enfureceu-se e alertou que ali “ninguém era escravo de ninguém” e que eram os empregados de mesa que tinham que fazer essa tarefa — e não Sónia. “Quando ele disse isso, a minha ex-assistente de cozinha suspirou, o chef abraçou-a e ela disse ‘obrigado’. Senti isso como uma humilhação, porque eu sempre defendi as minhas empregadas, nunca as tratei como tal, sempre fiz tudo com elas na cozinha”, desabafa.
As conversas privadas entre Stanisic e Sónia não ajudaram e deixaram Mónica insegura, que chegou mesmo a dizer que a ajudante não era, na verdade, uma grande ajuda.. Um episódio anterior com um cliente insatisfeito serviu de rastilho ao conflito na cozinha: “[Um cliente] queixou-se que o molho que o chef fez estava salgado e como já não era a primeira reclamação, coloquei o prato no balcão e fui buscar uma colher para provar ver se tinha razão ou se era só uma birra. Quando voltei, ela disse-me: ‘Isso vai ficar assim para eu limpar? Eu não limpo.'”.
O apoio do chef à funcionária frustrou Mónica que assume que ficou numa situação em que a “retratavam como uma falsa coitadinha”. Confrontou a produção com a vontade de desistir. Tentaram demovê-la da decisão e mostraram-lhe que tinha de desabafar com Ljubomir. “Disseram-me que o chef não sabia da minha vida, das minhas coisas, que tinha que me abrir. Não sou pessoa de mostrar tristeza, nem o Elói me vê a chorar”.
O momento de viragem aconteceu no final de um dos almoços de gravações. Mónica teve que apressar o serviço por causa de uma consulta no médico de um dos seus filhos. “A cinco minutos da consulta ainda estava preocupada em deixar comida para o Elói e para os miúdos”. O chef comoveu-se e virou-se para o marido de Mónica, que passou a ser o alvo de Stanisic. “Eu dizia que muitos dos nossos problemas estavam na cozinha e ele disse-me que se era assim, que eu devia ir para lá. E fui, que remédio. Eu faço tudo”, explica o proprietário d’O Lavinas. Assim foi: hoje é pau para toda a obra e é ele quem também dá uma mão a Mónica entre os tachos e nas mesas.
Apesar da aparente reconciliação, ao fim de algumas semanas, Sónia deixou O Lavinas. “Trabalhou mais uma semana e abandonou o posto de trabalho. Não me disse nada. Era o último dia de contrato dela mas não me avisou que não vinha mais. Trabalhou ao almoço e ao jantar já não apareceu. Ignorou chamadas e só atendeu mais tarde a dizer que estava muito stressada. A carta de demissão enviou-a só na semana passada. Não falei mais com ela — nem quero”, conta Mónica.
O novo Lavinas
Apesar do previsível receio, Mónica revelou que passou a inspeção do chef com boa nota. “Abriu os frigoríficos e estava tudo em ordem. Disse que estava tudo limpo.” Admite que os nervos atrapalharam e que o que fazia em cinco minutos, demorava o quádruplo do tempo a fazer em frente às câmaras. “Às tantas já nem sabia bem o que fazer quando me pedia uma coisa simples como alho laminado”, confessa.
À exceção de alguns episódios que testaram o pavio curto de Stanisic — como deitar óleo numa frigideira acaba de lavar e com água e o uso de um tupperware partido para guardar comida —, a cozinheira revela que, no que toca ao dia a dia do restaurante, tudo correu sem grandes sobressaltos. “Não posso dizer que tenha ralhado muito comigo”, diz.
Para colocar Mónica à prova, o chef chegou mesmo a montar uma armadilha “Num dos almoços decidiu que íamos fazer bochechas de vitela estufadas. Quando chegou a hora de abrir, perguntou-me se íamos servir os clientes às 15 horas, porque não ia estar pronto a tempo. Eu não sabia que demorava tanto tempo a cozinhar, ele fez de propósito para eu ter que improvisar e encontrar uma solução”.
Como sempre, o chef ajudou a criar e a desenhar novos pratos e ementas que, pelo que pudemos ver, foram quase totalmente ignoradas, bem como alguns dos conselhos para uma nova gestão e organização d’O Lavinas. Feitas as contas, pouco ou nada mudou no restaurante de Vila Real.
A diferença mais notória está na decoração: a sala ganhou cor, embora nas mesas, nem sinal das toalhas trazidas pela produção. A carta desenhada pelo chef está guardada estrategicamente numa caixa fechada — e da cozinha saem apenas os pratos simples do dia, à imagem do que já acontecia antes do programa. Mónica e Elói têm uma justificação.
“Os pratos que o chef criou fazem mais sentido à noite do que aos almoços de semana. As pessoas que aqui vêm querem comida simples, à moda da aldeia, não estão muito preocupados com a qualidade — e estão quase sempre com pressa. Alguns só têm 45 minutos para almoçar”, nota Mónica. Embora expliquem que gostavam de começar a abrir o restaurante ao jantar, referem que com o atual staff isso é impossível. Seria preciso contratar mais gente — e já estão à procura de um reforço para a cozinha. “Preciso de uma cozinheira para que eu possa ficar como auxiliar e assim ter mais tempo para tratar da minha família”, explica.
As especialidades criadas pelo chef, como o arroz de fumeiro e a massada de peixe, fazem parte dos planos de Mónica, mas apenas para os fins de semana. O plano passa por abrir aos domingos, embora isso ainda não tenha sido possível. Reservados para esses hipotéticos dias de funcionamento ficam também as novas toalhas de mesa, que têm evitado usar no dia a dia.
“Já tentámos mas sujam-se muito, ficam cheias de manchas de vinho. Não temos sobresselentes e atrasam muito o serviço. E o senhor da lavandaria não consegue lavar-nos tudo de um dia para o outro”, justifica Mónica.
Um dos conselhos de Stanisic que foi posto em prática foi o aumento da diária em 50 cêntimos: o prato do dia custa agora 6,5€. Motivo suficiente para algumas reclamações dos clientes. Uns nunca mais voltaram, outros mantiveram-se fiéis.
Seja qual for o resultado, a participação já valeu a pena, nem que seja para lavar a terrível imagem que Mónica tinha do chef. “Achei que era mau. No último dia [de gravações] já não o via como o chef, mas como um amigo. Cozinhava, falava, ria-me com ele. Passei a vê-lo com outros olhos, agora adoro-o”.
A ausência de novos pratos com toque do chef parecem não ter afetado a clientela habitual, embora o cenário possa ser radicalmente diferente depois do programa ir para o ar, com todos os curiosos a darem um salto ao Lavinas. “Os tipos ali da Cruz Vermelha já disseram que só vêm cá depois de ver o programa”, comenta Elói. “Dizem que só arriscam depois de ver o que eles mostram na televisão. “Preparada?”, perguntámos. Elói torceu o nariz. “A Mónica não está. Nem ela, nem nós.”