Ao fim de 37 anos, Onésimo Teotónio Almeida admite que poucos ainda guardam na memória do tumultuoso ano de 1983, vivido na fervilhante comunidade portuguesa de New Bedford. Não é o seu caso.
O açoriano que vive há quase 50 anos nos Estados Unidos é uma figura central da comunidade. Escolhido pelo Presidente da República para presidir às comemorações do Dia de Portugal em 2018 e agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique com o grau de Comendador (1997) e com a Grã-Cruz (2018), foi um dos intervenientes públicos do polémico caso da violação que chocou o país — e espicaçou os americanos contra os imigrantes portugueses.
Escritor, ensaísta, filósofo e professor catedrático na Universidade de Brown, uma das mais prestigiadas do país, envolveu-se e estudou de perto o drama que envolveu a violação de Cheryl Araújo, às mãos de quatro homens.
Desconhecido para muitos, a violação no Big Dan’s — que a NiT já contou ao pormenor — foi revisitada pelo nova série documental “Trial By Media”, disponível na Netflix, e voltou a reacender o tema que, conta à NiT o académico de 73 anos, está enterrado, mesmo entre os imigrantes de New Bedford.
Os primeiros relatos da violação da jovem portuguesa despertaram a atenção da imprensa a nível nacional, que voou em peso até à localidade do estado de Massachusetts, um dos grandes destinos dos emigrantes, muitos deles oriundos dos Açores. Tornou-se também no primeiro caso de uma violação a ser julgado em direto na televisão, o que motivou uma busca desenfreada por todos os detalhes sórdidos do caso que era, por si só, aparentemente chocante: uma jovem vítima de uma violação em grupo, enquanto os clientes do bar incentivavam os agressores.
Em conversa com a NiT por videoconferência, Onésimo Teotónio Almeida recorda a luta que travou em nome da comunidade portuguesa, “violada pela comunicação social” que, segundo o próprio, foi vítima de uma série de clichés e estereótipos difundidos pelos jornalistas.
Em 2009, assinou um ensaio no qual explica que os factos inicialmente divulgados pela imprensa nacional eram afinal, falsos. “Esta discrepância [nos factos] foi manifestada por um número considerável de pessoas da comunidade, mas foi feita numa língua que não a inglesa e consequentemente, não foi ouvida”, escreveu numa carta diriga ao “The New York Times”, que nunca chegou a ser publicada. Mais tarde, o jornal viria a assumir alguns erros no acompanhamento da história. Tarde demais para a reputação da comunidade.
Vive há quase 50 anos nos Estados Unidos. Como é que a comunidade era vista antes do surgimento do caso da violação?
A força da comunidade era a que havia emigrado a partir dos anos 60. Cerca de 180 mil portugueses vieram para cá entre 1965 e 1980. Era uma imigração recente, gente como a que ia para França, a maioria tinha apenas a terceira classe. Grande parte delas vivia em situação de iliteracia. Aqui [na costa este] a comunidade trabalhava nas fábricas da indústria têxtil, muitos foram trabalhar para o porto de pesca de New Bedford, o maior dos Estados Unidos, onde havia uma grande percentagem de trabalhadores portugueses. Era uma comunidade muito conservadora, muito religiosa, com hábitos tradicionais das famílias portugueses. Havia um preconceito muito grande relativamente às comunidades do sul da Europa. Era gente com pouca formação, poucas habilitações literárias, grande parte da comunidade era analfabeta. Havia uma atitude condescendente [por parte dos americanos], embora reconhecessem que era gente trabalhadora, de confiança, mas obviamente conservadora.
Foi uma barreira erguida pelos norte-americanos ou surgiu naturalmente?
Surge naturalmente porque essa gente quase não falava inglês. A língua separa as pessoas. Aprendiam o suficiente para se desenrascarem, mas a vida social era feita entre a comunidade, nos seus restaurantes, nas sua associações, nos clubes portugueses. Os hábitos culturais eram muito diferentes, embora houvesse aqui uma maior integração dos portugueses do que em qualquer outra parte da Europa. Nunca houve aqui uma situação como a dos bidonville em França. As pessoas em pouco tempo compravam as suas casas e arranjavam-nas, havia essa noção de que eram gente trabalhadora. Nunca houve guetos. Não teve nada a ver com a emigração para a Europa dos anos 60.
“As mulheres portuguesas eram mais desenrascadas, aprendiam inglês mais depressa do que os homens”
E depois veio o caso do Big Dan’s. Foi um ponto de viragem?
O cenário mudou naquele momento, mas depois desapareceu. Hoje ninguém fala disso. Naquela altura havia sinais de machismo na família portuguesa, de que o homem é que mandava, mas a verdade é que as mulheres portuguesas, quando vieram para aqui, aprendiam inglês mais depressa do que os homens. Eles tinham receio de aparecer em público e não saber a língua. As mulheres é que eram mais desenrascadas, conseguiam tirar a carta de condução, tinham que trabalhar nas fábricas, tinham que se governar e tratar da vida delas. Regra geral, integraram-se mais facilmente do que os homens. Se entrevistasse aquelas mulheres naquela altura, e ainda hoje, diriam que aqui têm uma emancipação maior, mais liberdade, são senhoras da sua vida. Mas nos anos 80 muita gente tinha acabado de chegar e havia sinais de que os homens eram machistas, de que eram autoritários. Quando apareceu o caso, começaram os estereótipos. As pessoas que não conheciam a comunidade de perto pensavam: “são latinos, são sexistas”. Os clichés vieram todos à mó de cima e foram transmitidos à comunicação social, que se agarrou a eles. Fui entrevistado por vários e tudo o que dizia que não lhes convinha, eles não queriam ouvir. Já sabiam o que queriam ouvir e esse é o grande mal dos média.
Como figura da comunidade, esteve envolvido publicamente na polémica. Como é que isso o afetou?
Não afetou. Eu era professor na universidade, tinha obviamente colegas que sabiam distinguir muito bem o comportamento de um indivíduo e do grupo a que ele pertence. Não fui vítima de nenhum ostracismo por causa disso. Agora, sim, muita gente achou que aquilo era típico da comunidade portuguesa. Acreditaram facilmente nisso por causa da ideia de que “a comunidade portuguesa é assim, é o que os homens fazem”. Era fácil para muitos perceberem que aquele fenómeno, da forma como foi contado, era uma coisa natural de acontecer num bar [português]. Só que o fenómeno como foi contado no início não teve nada a ver com o que se apurou nos tribunais. O público lidou sempre com uma imagem, uma narrativa bombástica feita pela comunicação social que não tinha nada a ver com o que se passou.
“O público lidou sempre com uma narrativa bombástica que não tinha nada a ver com o que se passou”
Colocou vária vezes em causa a versão da violação dada pela acusação e pela vítima. Num caso delicado como este, não foi acusado de defender violadores e criminosos?
Não fui acusado diretamente, mas implicitamente. Dei várias entrevistas e escolheram sempre algumas frases minhas e nunca a minha posição, que era a de que se sabia o que tinha acontecido — e não era o que estava a ser dito. Eles não queriam ouvir. “É português, está a defender o seu grupo e a desvirtuar os factos”, pensavam eles. Quando somos entrevistados, sentimos se a pessoa tem um parti pris e só que ouvir o que lhe interessa. Senti isso perfeitamente. Mais tarde, [os jornais, o The New York Times e o Los Angeles Times] colocaram a questão se o que se tinha dito que aconteceoi foi de facto o que aconteceu. Portanto, o que eu tinha dito estava correto e foi corroborado pelos jornais e em livro. No entanto, na altura não disseram que eu era isto ou aquilo, mas percebi que era assim que me viam, que eu era um machista português e que tomava a posição portuguesa e machista contra as mulheres.
Sentia que os jornais não procuravam a verdade?
Sim. Os portugueses eram um grupo pouco conhecido. [Os jornalistas] vinham com ideias feitas. Eu falei sempre numa “violação da comunidade pelos meios de comunicação social”. Era a primeira vez que um caso daqueles era transmitido pela televisão, não havia reality shows. Foi a primeira vez que toda a gente pode ver e ouvir a história toda. Só que na televisão não se podiam transmitir certas coisas sobre o passado das pessoas. Ninguém sabia o que se passou naquele bar, mas sabíamos que era uma história antiga entre eles, só que nada podia ser dito. Nós na comunidade conhecíamos a reputação do bar, das pessoas que lá iam, sabíamos que aquela gente se conhecia, que a história não era nada assim. E isso não podia ser dito por questões legais. Houve muitas questões ali que complicaram a situação.
“Não o disseram, mas percebi que me viam como um machista português”
A comunidade sabia de coisas a que a imprensa não tinha acesso?
Todos, eu e colegas dos jornais [locais], tínhamos informação de dentro e percebíamos que quando nos entrevistavam, eles não nos queriam ouvir. Sentíamos todos a mesma coisa. Eu tinha e ainda tenho um programa de televisão e, na altura, percebi que era impossível impedir a comunidade portuguesa de vir para a rua e fazer aquela marcha de protesto com 10 mil pessoas em Fall River [manifestação que se seguiu ao veredito que condenou a penas de prisão os acusados da violação]. Fui para a televisão sozinho e fiz uma intervenção de meia-hora à comunidade, a dizer para terem cuidado com o que faziam e diziam.
A manifestação passou a ideia de que os portugueses defendiam os violadores.
A manifestação não defendia os homens, de maneira nenhuma, mas foi filmada por helicópteros, os jornalistas foram e entrevistaram pessoas e, claro, no meio daquilo tudo há sempre gente que diz que “o lugar das mulheres é em casa”. Claro que eles pegavam nisso. Viajei para a Califórnia no dia seguinte e por toda a América só se falava disso. Nos jornais, as frases destacadas eram as frases tiradas da boca de um ou outro parvo que dizia aquilo no meio de 10 mil pessoas. Não tinha nenhuma representatividade, mas ficava a ideia de que aquelas pessoas estavam na rua a defender a ideia de que o lugar da mulher era em casa — e que se ela aparece num bar e é violada, a culpa é dela.
“Nós na comunidade conhecíamos a reputação do bar, das pessoas que lá iam, sabíamos que aquela gente se conhecia, que a história não era nada assim.”
Chegou a dizer que os danos causados à comunidade portuguesa “eram irremediáveis”. Ainda acha o mesmo?
Aquilo durou um bocado, mas depois passou. Está tudo completamente enterrado. Depois disso aconteceram tantos casos muito piores do que o do Big Dan’s nos Estado Unidos e que atraíram a comunicação social. Tornou-se banal. [A comunidade] acabou por beneficiar da banalização dos meios de comunicação social que falam desses assuntos. O que se vê na televisão, nas redes sociais e tudo o mais. Aquilo hoje é irrisório, ridículo quase. A imagem da comunidade foi afetada durante alguns anos. Muitos ficaram convencidos daquilo porque nunca leram jornais e porque as pessoas não vão atrás do assunto, nem nunca puseram a questão do que é que afinal aconteceu na realidade. Hoje já ninguém se recorda.
Nos anos seguintes, mesmo com a libertação dos acusados, ao fim de quatro anos, houve alguma reação?
Sei que na altura os jornais locais como o “Portuguese Times” fizeram alguma coisa, mas por essa altura tinha quase tudo desaparecido. Lembro-me soubemos que iam fazer um filme sobre o caso [“The Accused”, de 1988, com Jodie Foster] e que criámos uma comissão chamada Portuguese-American Congress. Escrevi uma carta à Warner Bros. em nome da comissão e foi por essa razão que o filme não fez nenhuma referência aos portugueses. Nunca.
“Escrevi uma carta à Warner Bros e foi por isso que o filme ‘The Accused’ não fez referência aos portugueses”
Foi um processo difícil?
Não. E isso deu nos uma experiência muito clara: basta uma carta, neste caso vinda do Portuguese-American Congress. Se fosse só uma carta de um indivíduo… Mas criámos essa organização, uma coisa ad hoc. Aquilo aparece [à Warner Bros.] e eles não sabiam que poder tinha o grupo. É uma coisa lógica num caso assim, eles não iam estigmatizar uma comunidade e a argumentação era muito clara. Resolveram não referir [os portugueses]. Quando o público viu o filme, pensou e associou ao caso, mas hoje há quem o veja e não faça ideia de que tem a ver com o caso português.
De lá para cá, mudou muita coisa na comunidade?
Continua muito ligada às suas tradições. Muita gente [da época do caso] morreu. Foi há 36 anos. Quem está hoje em cena são os filhos, que nessa altura eram crianças e jovens, e estão muitíssimo mais integrados. Portugal aparece hoje com uma imagem positiva, os Açores também. A imagem que as pessoas têm da comunidade é a que conhecem hoje, mesmo mantendo ela as suas tradições e festas. Está integrada, leva a sua vida normal misturada com os americanos.
Um caso semelhante, a acontecer hoje, teria a mesma repercussão?
Os média continuam a fazer a mesma coisa e isso é um problema. Sobre qualquer assunto, qualquer tema, imediatamente aparecem as mais incríveis versões e as pessoas ficam sem saber em quem acreditar. Um caso desses, hoje seria muito diferente. Não há a novidade que havia naquela altura. A imprensa americana e internacional está cheia daquilo — e de coisas piores, mil vezes piores.