“Se gritar: ‘Pega ladrão!’, não fica um, meu irmão.” O refrão da música do compositor Bezerra da Silva é usado para descrever o desalento dos brasileiros diante dos escândalos de corrupção do país e passa a abrir a segunda temporada de “O Mecanismo” — disponível desde sexta-feira, 10 de maio, na Netflix.
A nova temporada da série de José Padilha (um dos produtores executivos de “Narcos“) e Marcos Prado tem oito episódios e é inspirada pela Operação Lava Jato — a famosa investigação sobre um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro que envolve empresários e políticos. O enredo recomeça em 2014, quando a equipa liderada pela delegada Verena já prendeu 12 dos 13 principais empreiteiros do Brasil, após as eleições presidenciais.
“O Mecanismo” mostra desde a reeleição até ao impeachment de Janete Ruscov, numa clara referência à ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e coloca as atenções na busca por provas para a prisão do empresário e empreiteiro Ricardo Bretch.
Em 2018, a primeira temporada estreou marcada pela polémica. O realizador foi acusado de criar uma peça contra o Partido dos Trabalhadores, contribuindo para o clima de polarização política, cinco meses antes das eleições presidenciais do Brasil. Na altura, Padilha disse que a corrupção estava entranhada em todos os partidos, apesar do foco inicial da história estar no PT.
Desta vez, políticos de diferentes partidos estão envolvidos em crimes de corrupção. Em entrevista ao jornal “Estadão“, José Padilha explicou que “O Mecanismo” não tem ideologia e citou vários partidos envolvidos no esquema.
“Sempre disse que o PSDB era o mecanismo, que o PMDB era o patriarca do mecanismo, que o PT entrou para o mecanismo. Entre as condições necessárias que alguém tem de satisfazer para chegar à presidência do Brasil está participar no mecanismo”, afirmou o realizador.
Se já viu a primeira temporada de “O Mecanismo” mas não se recorda do que aconteceu ou não consegue distinguir o que é ficção ou realidade, a NiT recuperou alguns dos principais acontecimentos da série.
A Polícia Federal e a Justiça
O polícia Marco Ruffo, interpretado por Selton Mello, é inspirado no ex-delegado da polícia federal Gerson Machado — uma das figuras menos famosas da vida real. Foi responsável pela investigação de um esquema de corrupção que envolveu o Banco do Estado e Alberto Youssef (na série, Roberto Ibrahim), a pessoa que compra e vende dólares num mercado paralelo.
Na vida real, Machado abriu um inquérito sobre Alberto Youssef em 2008, anos antes da Operação Lava Jato começar. Em 2013, o delegado foi afastado das investigações e reformado precocemente, aos 49 anos, o que o levou à depressão. Na série, Marco Ruffo conhece Ibrahim desde a infância e chega a vasculhar o lixo dele para descobrir provas. Além disso, o polícia sofre de transtorno bipolar.
A inspiração por detrás da protagonista Verena (Caroline Abras) é a delegada Erika Marena. Foi ela quem batizou a operação policial como Lava Jato, na qual participou de 2013 a 2016. Isto porque a equipa descobriu que um posto de gasolina era utilizado para a lavagem de dinheiro. Na ficção, a principal responsável pela investigação vê os efeitos negativos do trabalho atingirem a sua vida pessoal — tanto a nível emocional quanto físico.
Um dos heróis da série é o juiz Paulo Rigo. A personagem é metódica, serena e apaixonada pela justiça. Qualquer semelhança com o Juiz Sérgio Moro não é mera coincidência. Entretanto, no final da primeira temporada, Rigo começa a ser afetado pela fama e até adota uma nova assinatura para dar autógrafos mais marcantes. Na segunda temporada, ele começa a pensar em eventuais passos políticos. Na vida real, Moro assumiu o cargo de Ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro.
Os presidentes do Brasil
Uma das maiores repercussões de “O Mecanismo” entre o público refere-se à frase “temos de estancar essa sangria”. Na vida real, o senador Romero Jucá foi quem disse estas palavras, mas na ficção a frase foi parar à boca do ex-presidente João Higino — personagem claramente inspirada no ex-presidente Lula da Silva — quando se referia à operação Lava Jato.
O Lula da série é mais calado e pensativo. Entretanto, a sua cena mais forte é quando João Higino recebe como presente o triplex, imóvel que seria o ponto chave para a condenação do presidente na vida real.
Janete Ruscov é candidata à presidência do Brasil. Logo no primeiro episódio da série, Janete usa a expressão “estocar [armazenar] o vento”, que ficou famosa num discurso da presidente Dilma Rousseff, em 2015. O guião diz que o melhor para a Lava Jato é a reeleição de Janete e o impeachment é retratado na segunda temporada como uma trama movida por políticos opositores para travar a operação da polícia federal.
Uma família corrupta
De forma idêntica à vida real, a história ganha uma nova dimensão política quando o diretor da Petrobrasil (referência à Petrobras) vê todos os seus esquemas desmascarados por causa de um carro de luxo. Em 2014, Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobras, foi descoberto por causa da nota fiscal do Range Rover Evoque que custava cerca de 57 mil euros e que recebeu como presente de Alberto Youssef.
Toda a família do ex-diretor foi envolvida na Lava Jato. Na vida real, as duas filhas e os dois genros dele foram gravados por câmaras de segurança, enquanto carregavam malas com documentos que incriminariam Paulo Roberto.
Na série, Shanni e Arianna Bachmann (filhas de Paulo Roberto Costa) foram fundidas numa só personagem, Shayenne. Já o marido, Ricky, é uma mistura de Márcio Lewkowicz, casado com Arianna, e Humberto Sampaio de Mesquita, que foi casado com Shanni.
A estação de serviço
Em “O Mecanismo”, o local chama-se Posto da Antena. Na vida real, trata-se do Posto da Torre e está localizado perto de um dos locais mais turísticos de Brasília, a capital do Brasil. A estação de serviço, onde funcionava também uma agência de câmbio e um espaço de kebab, foi alvo da primeira fase da Lava Jato.
Sob o comando de Carlos Habib Chater (Chebab, na série), a estação serviu de inspiração para o nome da operação. Na ficção e na vida real, Chebab foi o primeiro a ser preso. Como a realidade pode ser ainda mais surreal, quando saiu da prisão, Carlos Habib Chater voltou a gerir o local onde tudo começou.
Já a personagem Wilma Kitano foi inspirada em Nelma Kodama — uma mulher com quem Alberto Youssef tinha um caso e que tentou sair do Brasil com 200 mil euros escondidos na roupa interior. Ao depor, Nelma confessou que agenciava prostitutas para que distribuíssem o dinheiro desviado em Brasília. Na série, o truque também era usado para distribuir os valores pela capital.