Televisão
“Feud”, a nova série brilhante do canal FX que já devia estar a ver
Projeto de Ryan Murphy expõe a zanga entre Bette Davis e Joan Crawford (aqui interpretadas por Susan Sarandon e Jessica Lange). Nos Estados Unidos não se fala noutra coisa e até os Emmys já estarão “garantidos”.
“Dormiu com todos os coprotagonistas da MGM excepto a Lassie”, disse Bette Davis de Joan Crawford. Esta respondeu: “[A Bette Davis] nunca teve um dia — ou noite — feliz na vida dela.”
A zanga entre as duas estrelas que dominavam Hollywood nas décadas de 30 e 40 fez-se desta troca de provocações e insultos. Nos anos 50, ambas mais velhas e com cada vez menos papéis disponíveis, decidiram trabalhar juntas em “Que Teria Acontecido a Baby Jane?”. Nas filmagens, Davis terá agredido a colega na cabeça e, quando foi nomeada para um Óscar, Crawford fez apelos contra ela.
Tudo isso é contado em “Feud: Bette and Joan”, a nova série de Ryan Murphy (criador de “American Horror Story” e “American Crime Story”) em parceria com Jaffe Cohen e Michael Zam. Os papéis principais foram entregues a duas outras estrelas: Susan Sarandon como Bette Davis e Jessica Lange como Joan Crawford.
A primeira identificou-se de imediato com a personagem. “Nunca me vi como uma das meninas bonitas… Por isso percebia e sentia-me próxima disso”, explicou à revista “Entertainment Weekly”.
Por outro lado, Lange não podia sentir-se mais afastada da vida de Joan Crawford, vítima de abusos sexuais e de uma extrema pobreza. Obcecada com a imagem de perfeição em Hollywood, tinha rituais estranhos, que pensava atrasarem o seu envelhecimento. Todos os dias mergulhava a cara em gelo e witch hazel (um extrato vegetal de flores) e esfregava limão nos cotovelos. “Que merda estou a fazer?”, chegou a perguntar Jessica Lange a Ryan Murphy durante as gravações de “Feud”.
Ryan Murphy entrevistou Bette Davis antes da morte dela. A conversa passou de 20 minutos a quatro horas e deu a ideia para a série
Em entrevista ao “The Hollywood Reporter”, Jessica Lange confessou que não era uma grande fã de Crawford. “Não era que não gostasse do trabalho dela mas não era algo que eu perdesse muito tempo a ver”, disse.
A série, que nos Estados Unidos estreou a 5 de março e de quem toda a gente está a falar, é mais do que a história da zanga de duas divas. Expõe o domínio dos homens na indústria da altura, o escrutínio das revistas de mexericos e uma guerra sem fim incentivada pela produção de “Que Teria Acontecido a Baby Jane?” para manter a tensão real no ecrã.
Ryan Murphy era fã de Bette Davis desde miúdo. Muito pouco tempo antes da morte da atriz, em 1989, entrevistou-a. A conversa, que devia ter durado 20 minutos, prolongou-se por quatro horas. Cada vez que ele lhe perguntava sobre a colega Joan Crawford, ela dizia que a odiava mas acabava sempre por admitir que respeitava o seu profissionalismo.
Foi aí que nasceu a ideia para “Feud”, um projeto para o cinema. Murphy chegou a falar dele a Susan Sarandon mas ela percebeu de imediato que a história precisava de mais tempo. O filme passou assim a oito horas de televisão.
Ryan Murphy começou então a escrever a primeira temporada no mesmo momento em que criava a Half Foundation, que promove mais papéis e presença de mulheres em filmes e séries. Por isso também os oito episódios de “Feud” têm 15 papéis femininos em 40 e metade dos capítulos foram realizados por mulheres, incluindo Helen Hunt.
Além da relação das duas atrizes, a primeira temporada da produção — já está confirmada uma segunda, em 2018, desta vez sobre o príncipe Carlos e Diana — mostra também os dramas pessoais de cada uma.
Joan Crawford, que nasceu como Lucille Fay LeSueur, tinha o passado mais conturbado com “abusos físicos e abuso sexual” — num dos episódios da série, a personagem conta que perdeu a virgindade com o padrasto aos 11 anos. Para conseguir lidar com as sequelas, tudo era uma atuação.
“Ela reinventou tudo. Era filha de pobreza e de abuso e tornou-se dançarina nos anos 20. Depois tornou-se estrela de cinema. Depois tornou-se realeza de Hollywood. Acho que ela queria tão desesperadamente ser alguém que criou essa persona… e depois ficou confusa entre onde acabava a verdadeira Lucille LeSueur e onde começava a Joan Crawford”, explicou Ryan Murphy à “Vanity Fair”.
As verdadeiras atrizes em “Que Teria Acontecido a Baby Jane?”
Quando ela própria foi mãe, as coisas não ficaram mais fáceis. Christina Crawford, a primeira dos quatro filhos adotados pela atriz, publicou em 1978 “Mommie Dearest”, um livro escrito que deu origem a um filme de 1981, “Querida Mãezinha”, com Faye Dunaway. Nele, alegava que a mãe era abusiva verbal e fisicamente e que só queria saber da carreira.
“Não vou discutir com a Christina Crawford sobre o livro dela porque são as suas memórias pessoais. Mas a Joan Crawford era mais do que a filha escreveu. Era também muito boa pessoa e muito boa amiga”, garantiu Ryan Murphy à revista “Vanity Fair”.
Numa altura em qua as estrelas homossexuais de Hollywood escondiam a sua orientação e em que o ator Williams Haines revelou ser gay, Crawford foi das poucas a ficar a seu lado. Também o contratou para renovar a sua casa, fazendo dele um dos decoradores mais requisitados de Hollywood.
Também Jessica Lange tentou entender a personagem que interpreta. “Isso [passado de abusos] não é a formação de alguém que chega à maternidade com uma tremenda quantidade de experiência. Pelo que eu percebi, ela queria desesperadamente ser mãe. Mas acho que também tinha opiniões fortes sobre coisas como disciplina e generosidade.”
As filhas das duas atrizes publicaram livros com acusações, desde maus-tratos a bruxaria
Bette Davis, pelo contrário, cresceu num meio bem mais privilegiado, passando por vários colégios privados. Ganhou dois Óscares (“Jezebel, a Insubmissa” e “Mulher Perigosa”) mas era incrivelmente insegura, perfecionista e passava a vida em confrontos com produtores, realizadores e atores. “Tentei não fazer dela uma caricatura”, disse Susan Sarandon sobre a forma como abordou o papel.
Tal como Joan Crawford, também Davis foi atacada por uma das filhas. B.D. Hyman publicou recentemente no YouTube vários vídeos onde garante que a mãe “praticava bruxaria” e “lançava feitiços aos inimigos”. No entanto, a guerra já existia antes da morte de Bette Davis em 1989. Quando o livro “My Mother’s Keeper: A Daughter’s Candid Portrait of Her Famous Mother” foi publicado, em 1985, Davis disse que tinha sido “tão catastrófico como o AVC [que tinha sofrido pouco antes]”.
“Feud” tem o fascínio e o glamour de Hollywood, expõe o lado imperfeito e humano de mulheres que eram vistas como deusas e um elenco incrível. Às duas protagonistas juntam-se Sarah Paulson, Alfred Molina, Stanley Tucci e ainda participações especiais de Catherine Zeta-Jones e Kathy Bates.
Susan Sarandon e Jessica Lange estudaram intensamente livros, filmes e gravações de Bette Davis e Joan Crawford. Nos Estados já não há dúvidas, os Emmys estão “garantidos” para as duas.