Não lhe entregámos um cheque, não lhe oferecemos um troféu para exibir na estante lá de casa, não carimbámos nenhum diploma com o nome dele, nem sequer lhe pagámos um café — essa parte foi culpa dele, já lá iremos — mas a NiT elegeu Bruno Nogueira a Personalidade do Ano na área do lifestyle em Portugal. O humorista sucede assim ao chef Ljubomir Stanisic, a nossa escolha em 2017.
Os motivos são fáceis de encontrar. 2018 foi um ano cheio de projetos, tão diferentes quanto bem sucedidos para Bruno Nogueira. Fez teatro, regressou ao stand-up quase uma década mais tarde, estreou uma rubrica na Rádio Comercial cujo próprio nem imaginava o alcance estrondoso e criou uma série que ainda não parou de conquistar espectadores desde que estreou na televisão.
“Muito obrigada”, repete várias vezes. “Vocês são muito simpáticos”, diz à NiT ao telefone, quando, finalmente, conseguimos falar com ele. Podíamos ter estado com Bruno Nogueira pessoalmente, mas andámos entre chamadas e trocas de mensagens durante duas semanas, sem nunca conseguir acertar agendas. É por aí que ele começa.
“Peço mesmo desculpa. Entre espetáculos, compromissos, as miúdas doentes, eu doente, o Natal, as férias, não tem sido fácil.”
Aos 36 anos, Bruno Nogueira está muito longe de ser aquele miúdo engraçadinho que apresentava o “Curto Circuito” (em 2003) ou das piadas preparadas em minutos antes de entrar em direto no “Levanta-te e Ri”, mais ou menos pela mesma altura. Do outro lado da linha, fala de forma pausada e num tom sempre cordial. Tratamo-nos por você. Não demonstra ter pressa, apesar de ter as três filhas (que partilha com a atriz Beatriz Batarda) em casa naquele momento.
Obviamente que a calma é apenas aparente (se ter um filho de férias já é caótico, quando se juntam três, tudo pode descambar em poucos segundos).
“Andreia, tenho de desligar. A minha filha magoou-se. Já lhe ligo”, avisa.
Dois minutos depois, o telefone toca. Tudo pacífico outra vez, era falso alarme. “Uma delas apareceu-me aqui a dizer que a irmã tinha o dedo ao contrário. Enfim, felizmente não foi nada.”
Deixemos então o lado pessoal de Bruno Nogueira sossegado, até porque ele tem filhas para tomar conta, e voltemos ao que faz dele a personalidade portuguesa que mais se destacou este ano no lifestyle.
Um talk show, 11 convidados e um companheiro chamado MEC
Para sermos justos, é preciso rebobinar até 5 de dezembro de 2017, quando estreou na RTP1 “Fugiram de Casa de Seus Pais”, um programa co-apresentado com Miguel Esteves Cardoso.
“Não nos conhecemos muito bem e vamos conversar os dois. E depois, se for uma merda, é uma merda”, disse o escritor ao jornal “Público” nessa altura.
Não foi “uma merda”, pelo contrário. Durante 13 episódios (até 27 de fevereiro de 2018), os dois discutiram temas da sociedade portuguesa e tiveram convidados como Nuno Markl, José Avillez, Capicua ou Rita Blanco. O capítulo final teve quase 200 mil espectadores (numa terça-feira, já depois das 22 horas).
Em setembro, os dois juntaram-se de novo no festival The Famous Fest para apresentar pela primeira vez ao vivo uma versão do programa.
Atores a fazerem de “Actores”
2018 começou no teatro com o lado mais tresloucado, desgastado e depressivo de ser ator. Bruno Nogueira, Nuno Lopes, Miguel Guilherme, Rita Cabaço e Carolina Amaral interpretaram-se a si próprios, fizeram de personagens antigas ou copiaram os colegas do lado. “Actores” teve encenação de Marco Martins e esteve em cena no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Estreou a 11 de janeiro e teve sessões até dia 28 desse mês.
Na altura, o “GPS”, suplemento da revista “Sábado”, deu-lhe 4 estrelas e meia em cinco possíveis e escreveu que os protagonistas assumiam “com perícia um exercício exigente, que equilibra humor, drama e reflexão”.
Testar piadas com público
Nos meses seguintes, Bruno Nogueira andou mais desaparecido, mas apenas aparentemente — estava dedicado a “Sara”, a série que chegaria à televisão no final do ano. Ainda assim, em junho, arranjou tempo para se voltar a juntar a Manuela Azevedo, dos Clã, no espetáculo “Deixem o Pimba em Paz” durante a noite de Santo António, em Lisboa. A 26 desse mês, com apenas 24 horas de aviso, instalou-se numa sala do São Jorge para fazer stand-up. “Construção — Testes para Stand-Up” tinha cerca de 30 pessoas no público, um número propositadamente pequeno. O objetivo era mesmo testar piadas com um público e trocar ideias com outros humoristas, neste caso Eduardo Madeira, Salvador Martinha e Luís Franco-Bastos.
“Fiz aquilo com muito gosto. Sugerir coisas como se fosse para um trabalho nosso é o patamar máximo da generosidade. Às vezes não é fácil. A tentação é não dizer nada para ficarmos com aquilo para nós e o outro ser menos bom”, explica à NiT.
“Fico doente quando alguém sentado num restaurante chama: ‘Bruno, anda cá.'”
Para Bruno Nogueira, cada vez fazem mais sentido as colaborações entre humoristas. Até porque “o meio é muito pequeno, todos querem avançar e experimentar coisas diferentes”.
A primeira noite de “Construção — Testes para Stand-Up” correu tão bem que rapidamente surgiram outras datas para continuar o espetáculo. O ideal seria mesmo ter em permanência um espaço onde os humoristas pudessem atuar com regularidade dez ou 15 minutos para ir experimentando material. Aliás, a ideia de um clube de comédia é algo em que já está a pensar há algum tempo e que pode avançar em breve.
“É difícil criar rotatividade porque, lá está, somos poucos e não há muitos que queiram testar material mas pode acontecer num futuro próximo. Não posso dizer muito mais porque não está tudo fechado.”
Até aqui nenhum destes conceitos funcionou em Lisboa porque era impossível preencher todas as noites. A solução seria então ter espetáculos apenas ao fim de semana? “Sim, acho que teria de ser por aí. Em épocas específicas, em dias específicos, nunca uma semana inteira.”
Uma troca inesperada de rádios
Em setembro chegou ao fim a rubrica “Mata-Bicho”, que Bruno Nogueira e João Quadros faziam diariamente na Antena 3. Pouco mais de uma semana depois, os dois regressaram à TSF com “Tubo de Ensaio”, um formato que já tinha ocupado aquela rádio durante oito anos.
No mesmo mês, “Não Tejas Medo” estreou na Rádio Comercial. Aqui só entrava a personagem Amílcar, um dissertador dos grandes problemas do universo. Todos os dias lia uma questão de um ouvinte e analisava a problemática até à exaustão. Para aqueles que ainda duvidam, sim, é verdade: eram mesmo os ouvintes que enviavam perguntas do género: “porque é que o pato sai assado do forno mas o pão sai cozido?”.
“Teve uma repercussão maior do que imaginava. Recebia pelo menos 80 mensagens por dia. Escolhia as melhores e o trabalho estava quase feito”, conta à NiT.
Amílcar tornou-se tão conhecido que quando alguém se cruza com ele, o mais comum é tentar imitar a personagem: “É muito engraçado porque misturam uma data de sotaques e nenhum é algarvio.”
É pouco provável sair à rua e passar despercebido — até porque mede mais de 1,90 metros — mas Bruno Nogueira garante que “Portugal é muito tranquilo comparado com o que se passa noutros países com figuras públicas”.
No entanto, há uma coisa que o deixa profundamente desconfortável. “Quando nos vêem na televisão, as pessoas criam uma falsa intimidade, eu percebo isso mas depois há situações embaraçosas. Fico doente quando há alguém sentado num restaurante e chama: ‘Bruno, anda cá’.”
O que é se faz, então, nessas ocasiões? “Digo à pessoa para vir ela, se quiser [risos].”
Em pouco mais de nove meses nasceu “Sara”
A ideia principal (uma respeitada atriz de cinema, interpretada por Beatriz Batarda, que só faz drama mas já não consegue chorar) estava na cabeça há algum tempo mas foi num almoço de amigos que tudo começou realmente a desenvolver-se.
“Estava lá o Marco Martins e perguntou-me o que eu estava a fazer naquele momento. Expliquei-lhe e ele interessou-se pela ideia”, explica à NiT.
A Bruno Nogueira e ao realizador — que nunca tinha trabalhado em televisão — juntou-se o escritor Ricardo Adolfo e o guião de “Sara”, repleto de humor negro sobre o cinema intelectual e as novelas, foi concebido em conjunto pelos três. “A escrita foi rápida, não chegou a um ano”.
Quando os oito episódios começaram a ser exibidos na RTP2, em outubro, ganharam rapidamente espectadores e muitos elogios. O alvoroço continua nas redes sociais, uma vez que a série pode agora ser inteiramente vista na plataforma RTP Play.
“Não me deixo levar demasiado pela reação das pessoas, nunca é muito fidedigna. Acho que é sempre influenciada pelo que essa pessoa estava à espera de ver nesse momento.” E acrescenta: “Eu sabia que com o Marco [Martins] e a Beatriz [Batarda] havia mínimos olímpicos para cumprir, mas às vezes há séries com ideias muito boas que são corrompidas pelo caminho. Os canais interferem, a produção interfere.”
Bruno Nogueira acompanhou o processo do início ao fim e isso ajudou a salvaguardar o que tinha imaginado. Ainda assim, gerou-se alguma polémica quando se soube que o projeto tinha sido pensado para a RTP1 e que, afinal, seria transmitido na RTP2.
Na história não teria mudado grande coisa mas, se fosse esse o caminho desde o início, os episódios “teriam tido outro tempo, outra edição”.
Para o argumentista acabou por ser tudo “um grande mal-entendido”. Ainda assim, sublinha: “Quando a produção convidou os atores, foi dito que seria para um determinado canal. Alguns tiveram isso em conta, certamente”.
Os motivos para a troca de canal foram apresentados como essenciais para “o processo ir para a frente financeiramente”. Perante isso, e com uma equipa dependente das suas decisões, Bruno Nogueira sentiu que não tinha como recuar.
Apesar de tudo, garante, “o processo foi transparente e ninguém passou uma rasteira a ninguém”. Além disso, “passar na RTP2 não é uma coisa menor”. “Sara” teve sempre o mesmo horário, fidelizando os espectadores, e não teve intervalos.”
Para Bruno Nogueira, o verdadeiro teste de qualidade do projeto é a sobrevivência ao tempo. “Se as pessoas ainda falarem dele daqui a dois ou três anos, isso sim, é a melhor coisa.” Até lá, além dos elogios do público, o autor de “Sara” vai ficando “sobretudo comovido” com o reconhecimento das pessoas que trabalham na mesma área.
“Há um certo pudor em elogiar. Para muita gente, o facto de reconhecer o bom trabalho de um colega é sinónimo de estar a rebaixar o próprio trabalho.”
10 anos sem stand-up
“Bruno Nogueira aborda questões que só incomodam pessoas que têm demasiado tempo livre.” Era assim descrito “Depois do Medo”, o primeiro espetáculo de stand-up a solo em dez anos. A estreia aconteceu a 29 de novembro, em Faro, e estão sempre a surgir novas datas e locais, como se pode ver na sua página de Facebook.
O humorista continua a preparar os textos em cima da hora, admite. “Trabalho sempre quando já não há alternativa. Funciono bem sob pressão.”
Escreve em casa mas essa realidade não o deixa ser organizado. “Agora as miúdas estão todas na escola mas quando a mais nova ainda estava em casa, para ela não existia porta no escritório [risos].”
Para sentir que não está a falhar em nada e, ao mesmo tempo, não ter a tentação de ter a família na divisão ao lado, a solução é escrever durante a noite: “Trabalho até às duas, três da manhã. É uma espécie de rotina, até porque coincide com os horários dos espetáculos.”
Um musical, uma peça de teatro e uma digressão pelo País em 2019
A primeira temporada de “Não Tejas Medo” terminou e ainda não há data para o regresso à Rádio Comercial, mas “Tubo de Ensaio” é para ouvir na TSF em formato diário a partir de janeiro.
A promessa é, mais uma vez, não haver temas proibidos. “Se me estiver a policiar, alguma coisa já está a correr mal. O público encarrega-se de se ofender com o que quiser”, garante à NiT.
No programa há “noticiários em jeito de stand-up, entrevistas ficcionadas e figuras públicas que fazem habilidades na rádio”, pode ler-se na sinopse. “Antes de conhecermos uma pessoa, não temos qualquer filtro. Não sei se isso é bom ou mau”, acrescenta Bruno Nogueira.
Quando há uma relação, dizer piadas sobre alguém pode já não ser assim tão simples. “O professor Marcelo [Rebelo de Sousa] foi a pessoa que mais me custou até hoje. Ele foi sempre tão simpático comigo, afetuoso. Não me abstive de falar mas é impossível não ter pelo menos uma noção diferente do que se vai dizer.”
Filtro é coisa que não vai existir no musical “Uma Nêspera no Cu”, que se instala em Lisboa e no Porto em fevereiro. Os espetáculos são para maiores de 16 anos, por isso, considerem-se avisados. O projeto, que junta ainda Nuno Markl e Filipe Melo, nasceu em 2015 com uma ideia simples: era um jogo em que os três e um convidado tinham de escolher um de dois cenários possíveis e justificar a opção.
Pelo País vai ainda andar “Depois do Medo”. “Era para ser até março mas tínhamos sítios infindáveis, por isso, haverá stand-up até novembro.”
O mais provável é que, entretanto, se oiça também falar do clube de comédia. “Gostava de ter um sítio e o esboço está feito”.
Lá para março Bruno Nogueira faz uma pausa no stand-up para se dedicar a uma peça de teatro de Tiago Guedes — que deverá estar em cena em maio e junho.
No meio disto tudo, só falta o regresso à televisão. “De vez em quando surge uma ideia e geralmente sou eu que vou até aos canais, não são eles que pedem. Até porque não consigo parir uma ideia por encomenda.”