À oitava de 15 perguntas, sensivelmente a meio do caminho e apenas com uma ajuda dos 50/50, poucos acreditavam que o inseguro major britânico de 38 anos seria capaz de conquistar o milhão de libras do “Quem Quer Ser Milionário?”. Em três anos, o cheque do grande prémio havia sido entregue a apenas um concorrente. Parecia uma corrida perdida à partida.
A uma questão do derradeiro patamar de segurança das 32 mil libras e com a última ajuda gasta, a sorte parecia ser o único aliado que restava ao inglês. De quem era o álbum de 2000 que se tornou num êxito nas tabelas britânicas? Entre A1 e Craig David, o concorrente hesitou. Simulou um tiro no escuro com a primeira hipótese, para depois reverter a marcha e apostar na última opção. Estava certo. “Como é que conseguiu fazer isto, não faço a mais pequena ideia”, reagiu o apresentador Chris Tarrant. Mas havia uma explicação — e a sorte não era a sua única aliada.
O ziguezague prolongou-se até à pergunta final e só algumas semanas depois é que a produção do programa encontraria uma explicação para as dúvidas que percorreram os corredores na noite de 10 de setembro de 2001.
Os palpites iniciais estavam quase sempre errados. Ingram vagueava pelas diferentes hipóteses e, contrariamente ao que acontecia com todos os outros concorrentes, não tentava seguir um caminho lógico até à eventual resposta correta. Seria possível um concorrente tão inseguro vencer o concurso com base em sorte pura? Claro que não.
A produtora do programa cancelou a entrega do prémio e acusou Charles Ingram de ter feito batota. No esquema estariam envolvidas mais duas pessoas: Diana Ingram, a mulher que estava na assistência; e Tecwen Whittock, um dos concorrentes sentado nos lugares do jogo do dedo rápido. O esquema era tão simples que praticamente ninguém deu por ele. Infelizmente para o trio, o programa era um dos mais vistos no país e as câmara e microfones deram finalmente a resposta a Tarrant. Como é que Charles descobriu que tinha que dar uma volta de 180º até à resposta certa e que não era A1, mas sim Craig David? Uma simples tosse.
A batota de Charles Ingram, hoje conhecido como Major Tosse, tornou-se no assunto mais falado no Reino Unido. Quase vinte anos depois, a bizarra história do homem quem enganou o concurso mais famoso do mundo dá tema a uma minissérie britânica. “Quiz”, que estreou a 13 de abril, é uma espécie de reconstituição do caso que também vai voltar aos tribunais. Charles continua a dizer que está inocente.
Desesperadamente à procura de dinheiro
Charles não foi o primeiro membro da família a aventurar-se no mundo dos concursos televisivos. No início desse mesmo ano, a mulher Diana tinha participado no “Quem Quer Ser Milionário?”, onde ganhou apenas 32 mil libras. Também o seu irmão e cunhado de Charles, Adrian Pollock, tinha sido protagonista no final de 2000.
Ambos foram instrumentais na participação de Charles. Viciados em jogos e concursos, Adrian sabia que nem tudo podia ser entregue à sorte. Para chegar à cadeira do “Quem Quer Ser Milionário?” era necessário responder à pergunta de casa, cuja resposta era dada ao telefone. Quem ganhasse, teria oportunidade de se sentar numa de oito cadeiras para o jogo do dedo rápido. Só batendo os restantes concorrentes é que poderiam ter ambição de chegar ao prémio milionário.
Adrian criou então uma máquina igual às do jogo do dedo rápido, na qual Charles treinava 20 minutos diários, até que chegasse o dia em que a rapidez seria a sua única aliada. Para lá chegar, o casal terá gasto milhares de euros em chamadas, de forma a aumentarem as chances de serem escolhidos. Assim foi.
O vício e a ambição não foram as únicas motivações do grupo. Charles, pai de três crianças, teria mais de 50 mil euros de dívidas para pagar e o esquema terá parecido, à altura, a forma mais fácil de resolver os problemas financeiros da família. O terceiro elemento, Tecwen Whittock, teria também uma dívida acima dos 40 mil euros. Um milhão de euros poderia resolver todos estes problemas.
Como enganar um país inteiro
A 9 de setembro de 2001, Ingram teve apenas tempo para chegar à quinta pergunta. O programa terminou e deveria continuar no dia seguinte. O casal sabia que dificilmente teria hipóteses de o vencer de forma justa e por isso tinha desenhado um plano inicial que obrigaria Charles a usar quatro pagers, presos a diferentes partes do corpo, cada um correspondente a uma das quatro letras das respostas. Um cúmplice no estúdio usaria então um telemóvel para indicar a resposta certa. O plano, acreditam os detetives, foi colocado de parte por ser demasiado arriscado.
O plano precisava de um terceiro elemento. Eis que entra no esquema Tecwen Whittock, professor universitário de 53 anos. A primeira tese revelava que o plano tinha sido desenhado entre 9 e 10 de setembro — e que serviu para a defesa explicar que seria impossível montar um esquema de batota em tão pouco tempo. Os registos telefónicos vieram demonstrar, mais tarde, que o casal e Whittock já comunicavam entre si há meses.
Chegados ao dia fatídico, o major tinha pela frente uma montanha para escalar. Assim que o concurso recomeçou, a estratégia começou a tornar-se mais evidente. O modus operandi era quase sempre o mesmo: Ingram hesitava, lançava um pequeno palpite para o ar e depois percorria as outras respostas, uma a uma, à espera do sinal que lhe indicaria a opção correta. Whittock estava encarregue da tarefa de tossir no momento certo.
O programa que a produção disponibilizou integralmente no YouTube permite ver o plano em ação em todo o seu esplendor. É difícil de perceber como é que o trio achava que o esquema tinha tudo para dar certo. Ingram foi tudo menos discreto e colocou-se várias vezes em posições desnecessariamente complicadas, ao comprometer-se desde início com uma resposta, para depois ter que mudar de opinião ao receber o sinal do cúmplice. E era incapaz de a justificar ao apresentador.
Foi, aliás, esse comportamento errático e dificilmente explicável que serviu de alerta à produção que, depois de revisitar as gravações, foi capaz de identificar 19 tosses fortes, sempre em momentos-chave — e que tiveram quase sempre consequência na lógica e no comportamento de Charles.
Seis dessas tosses tiveram lugar na derradeira pergunta, perante um Christ Tarrant perfeitamente estupefacto. Charles percorreu a metade mais difícil da tabela do concurso sem ajudas e apenas com palpites. Nunca fez questão de disfarçar a incerteza da sua resposta. No momento crucial, voltou a acertar e lançaram-se os confetis. Tarrant não queria acreditar: “Este é o concorrente mais incrível que já tivemos neste programa”.
Apesar da alegria de Diane e Charles em palco, o regresso aos camarins lançou mais uma dúvida na cabeça dos produtores. O casal, que deveria estar feliz, lançou-se numa discussão, alegadamente por causa da imprudência do marido. Os prémios mais baixos serviam perfeitamente para acabar com a dívida da família. Charles sentiu-se poderoso e quis arriscar. Em vez de sair do programa com 32 mil libras, trouxe um cheque de um milhão. Só que o dinheiro nunca chegou.
Uma reputação arruinada
Depois de uma extensiva revisão das filmagens, a produtora do programa suspendeu o pagamento do prémio. Diane, Charles e Tecwen foram detidos por conspiração e seguiu-se uma batalha judicial de quatro semanas. Os três alegaram a sua inocência. Do outro lado, acenava-se com a cassete G, uma compilação composta pela defesa dos momentos em que acreditavam ser possível detetar o esquema.
A defesa argumentou com tudo o que podia, mas a sentença foi clara e todos foram condenados a uma multa de 130 mil euros e penas suspensas: 18 meses para o casal, 12 para Whittock. O cenário não melhorou para Charles, a quem foi retirado o título de major do exército britânico após 17 anos de serviço.
Quase vinte anos depois, a vida mudou radicalmente. Mudaram de cidade e continuam a ser os famosos “batoteiros do “Quem Quer Ser Milionário?””. Charles voltou ao tribunal para ser condenado de burla a uma empresa de seguros. Ao tribunal, revelou que o escândalo de 2001 o tinha arruinado — e como legado, acumulou uma divida de 458 mil euros.
Agora, mesmo a tempo da estreia da minissérie que trouxe de volta os Ingrams à fama — na verdade, ambos têm acumulado aparições em concursos e programas televisivos —, o casal parece querer voltar também aos tribunais.
Munidos de novas provas e representados por Rhona Friedman, uma advogada especialista em direitos humanos, pretendem inverter a sentença de 2003. “Nessa altura, a análise de tosse não existia. Houve até um especialista chamado pela acusação que disse que este tipo de análise era território desconhecido”, explica.
Argumentam que os vídeos apresentados distorceram e manipularam o som e que houve quase duas centenas de momentos de tosse em todo o programa. O casal lançou mesmo um site onde pede ajuda para a batalha legal que se deve seguir.
Manipulações e edições à parte, Friedman atesta a inocência do casal e particularmente de Charles, que fez nesse programa a primeira aparição na televisão, frente a um país inteiro. O major teve mesmo o descaramento de tentar roubar um milhão de libras à frente de toda a gente? “Teria que ter feito a performance de uma vida e [Charles] não é um homem capaz de o fazer”.