Álex era um miúdo solitário e patologicamente tímido. Passou a infância a ler livros franceses e espanhóis. Tempo não faltava: a mãe era dona de uma loja e só chegava a casa à noite. “Lia durante cinco horas por dia”, recorda. Cresceu, estudou e formou-se em jornalismo. “Era a ovelha negra da família. O meu irmão especializou-se em inteligência artificial e a minha irmã em engenharia aeronáutica. Eles é que eram os grandes cérebros e eu o desgraçadinho das letras.”
Aos 52 anos, Pina é hoje um dos showrunners — escreve, produz e coordena — de uma das séries mais vistas em todo o mundo. “La Casa de Papel” tornou-se na produção de língua estrangeira mais vista na maior plataforma de streaming do planeta, a Netflix. A empresa apaixonou-se pela arte do espanhol, de tal forma que o convenceu a assinar um contrato de exclusividade.
“É o primeiro acordo com um showrunner latino. Uma ótima notícia para quem faz ficção fora do mundo anglo-saxónico, podemos começar a competir com a indústria toda poderosa do entretenimento”, recordava em 2018 ao “El País”.
Nascido na capital da região de Navarra, Pamplona, estudou jornalismo e acabou por arriscar na profissão. Escreveu para o “Diario Vasco” e para o “Diario de Maiorca”, experiências que foram decisivas para afinar a mente e a imaginação para o que estava por vir. “O jornalismo dá-te perspetiva e tem algo em comum com a ficção: tens tempo limitado para escrever e deves utilizá-lo da melhor forma possível. A diferença é que, no jornalismo, tens limites impostos pela realidade, na ficção tens outros completamente diferentes”, recorda ao “Clarin”.
“Tinha uma vocação para o jornalismo, um conceito que se tem vindo a extinguir. Dava-me com escritores e jornalistas bons que queriam ganhar a vida a escrever e eu também o ambicionava.” Mas para ganhar dinheiro, teve que mudar de carreira. Assim fez e assim aconteceu.
Hoje não é só o famoso criador de “La Casa de Papel”, mas também fundador e dono da empresa que produziu a série, a Vancouver Media, que só em 2018 lucrou 1,9 milhões de euros. Esta sexta-feira, 15 de maio, lançou na Netflix mais uma série, “White Lines”, a primeira concebida de propósito para a Netflix, que conta com o português Nuno Lopes como um dos protagonistas. A caminho está outra produção, “Sky Rojo”. Álex Pina já não é, definitivamente, o desgraçadinho das letras.
Criador de hits
Provavelmente recorda-se de duas séries que passaram discretamente pela televisão portuguesa. Em 1999, “Jornalistas” relatava o dia a dia de uma redação e teve direito a duas temporadas. Mais tarde, em 2005, “Os Serranos” descrevia o quotidiano de uma família disfuncional. Ambas saíram da mente de Álex Pina, por essa altura um jovem argumentista.
Foram um sucesso em Espanha e deram espaço ao espanhol para criar ainda mais produções. As cinco temporadas de “Los Hombres de Paco” levaram-no ao sucesso nacional. A vida era boa, pelo menos até ao primeiro grande fracasso. “O momento mais difícil da minha vida”, descreve o homem que garante que costuma chorar de emoção enquanto escreve os momentos mais dramáticos das suas criações.
“Bienvenidos a Lolita” falhou nas audiências e não viveu além dos oito episódios. “A série narrava a história de um cabaré e tinha que ser canalha, mas a crise trouxe o medo e acabou por ser uma série diocesana que não representava o que é um cabaré. E quando algo não é verdadeiro, falha. Não tinha foco, havia problemas por todo o lado e eu sabia disso”, recorda.
Costuma-se dizer que todas as derrotas trazem uma lição. E foi isso que aconteceu com Pina. Na sequência do desastre, o espanhol fechou-se em casa durante seis meses. Foi à frente de uma televisão que voltou a inspirar-se, na companhia de Walter White e em maratonas exaustivas de “Breaking Bad”.
“Revi episódio a episódio para mudar a forma como escrevo, como começamos e terminamos as séries. Até esse momento, criávamos séries como se fossem churros, de forma industrial. Sabíamos onde começávamos mas nunca onde terminávamos.”
A metamorfose na forma de escrever e gravar aconteceu em “Vis a Vis”, a antecessora de “La Casa de Papel”, que se tornou também num êxito internacional da Netflix, apesar de ser um projeto original da televisão espanhola (e de em Portugal também ter sido transmitida na Fox). Aí, tudo foi feito de forma distinta: “Quando a criámos já sabíamos como ia ser o final ao fim de vinte e tal episódios. Decidimos que em cada série iríamos contar algo concreto e assim foi.”
O Mundo de Papel
O jovem que comandou uma casa de jogo de má fama em Pamplona e que tocou numa banda de rock é hoje uma celebridade que encontra na sua história o ingrediente mágico do sucesso. “Era um canalha e ainda o sou. Acho que tem a ver com a parte da minha escrita que funciona. Este país sempre foi muito adepto da libertinagem, que está a ser aniquilado pelo politicamente correto. Eu estou a tentar vender essa libertinagem à Netflix”, explica.
Estava na ilha de Koh Chang, na Tailândia, quando assinou o primeiro episódio de “La Casa de Papel”, que chegou em 2017 ao canal espanhol Antena 3, com pouco brilhantismo. A estreia juntou em frente da televisão quatro milhões de espectadores e 25 por cento do share. Ao fim de dois meses, tinha perdido metade dos espectadores. Pina tem uma explicação.
“A Antena 3 financia-se com publicidade e tem os seus estudos que dizem quando deve emitir as coisas. O horário é muito exigente com o espectador [o último episódio foi para o ar poucos minutos antes das 23 horas], entre os ‘voltamos dentro de seis minutos’ e os anúncios (…) quando durante ‘La Casa de Papel’ tens que ver um anúncio de champôs a meio de um assalto, o teu cérebro entra em curto-circuito”, justifica.
A entrada na Netflix mudou tudo, para “La Casa de Papel” e também para “Vis a Vis”. Sobretudo para Álex Pina. Dois meses depois da estreia na plataforma e apesar dos números de visualizações dispararem para números nunca vistos, foi preciso colocar-se em frente à televisão para perceber a dimensão do fenómeno. Aconteceu quando viu uma coreografia gigante inspirada na série, num estádio da Arábia Saudita. Ou quando percebeu que o Carnaval do Rio de Janeiro, no Brasil, estava inundado com máscaras de Dali.
“La Casa de Papel” virou o mundo do avesso. “Chegaram a ligar-nos empresários turcos que pagavam para jantar com o elenco. Enviavam-nos pedidos de todo o mundo, especialmente dos países árabes. Um queria alugar a Casa de Toledo, onde foi gravado o golpe, para o aniversário de um dos filhos”, conta em entrevista.
Um apaixonado pela “escrita precisa da maravilhosa ‘The Crown’” — da produtora britânica Left Bank Pictures, com quem trabalhou na produção de “White Lines” —, Pina maravilha-se com a era dourada das séries, da qual é um dos protagonistas. Os tempos da ovelha negra já lá vão. “Para um tipo tão tímido como eu, acostumado a estar atrás de um monitor, tudo isto é um pouco avassalador. Há um ano [antes da estreia de “La Casa de Papel”], não poderia imaginar que estaria a fazer propostas aos maiores como a HBO ou a Netflix. Agora estou apenas a desfrutar.”