Foi a 29 de novembro que chegou à Netflix “Os Filmes da Nossa Infância”. É uma série documental dos mesmos criadores de “Os Brinquedos da Nossa Infância” sobre produções icónicas dos anos 80 e 90, que marcaram uma geração (ou mais).
O objetivo é entender o fenómeno, perceber por que certas coisas foram feitas de determinada forma no filme, e descobrir curiosidades sobre os bastidores da produção. Tudo isto enquanto se mergulha num universo mágico de nostalgia.
“Sozinho em Casa”, “Os Caça-Fantasmas”, “Die Hard (Assalto ao Arranha-Céus)” e “Dirty Dancing — Dança Comigo” são os quatro filmes em destaque na série documental — cada capítulo tem entre 45 e 50 minutos.
A NiT já assistiu ao episódio sobre “Dirty Dancing — Dança Comigo”, o primeiro da temporada — e um daqueles que têm mais histórias curiosas e pormenores engraçados. O filme estreou em 1987, venceu um Óscar de Melhor Canção Original — para “(I’ve Had) The Time of My Life” — e foi realizado por Emile Ardolino.
Esta é a história do amor de verão entre Baby, uma miúda rica e ingénua, e Johnny Castle, instrutor de dança no hotel onde a família Houseman se instalou. Tudo acontece no início dos anos 60.
A verdadeira história começou, porém, com Eleanor Bergstein, que teve a ideia para o argumento original. O que muitas pessoas não sabem — ou não sabiam, até ver este episódio da série da Netflix — é que muitos dos elementos do enredo são baseados na vida real da própria Eleanor.
Até ter 20 anos, Eleanor era tratada por todos como Baby. Tal como a protagonista do filme, ela era de uma família abastada, ia de férias para as montanhas Catskills e o seu pai era médico.
“À noite, íamos para as caves e dançávamos juntos. E eu era muito boa nisso”, conta Bergstein na série da Netflix, apesar de esclarecer o assunto. “Há muitas coisas que tirei da minha vida, mas não corresponde à história da minha vida.”
De qualquer forma, de outra maneira não poderia chegar a esta história. O conceito de dirty dancing consistia, como sabemos, numa dança sensual, com muito contacto entre os dois parceiros, que se praticava de forma mais ou menos escondida. Era algo que Bergstein fazia durante a sua adolescência e que quis retratar no primeiro filme que escreveu, “It’s My Turn”, que estreou em 1980 e tinha Michael Douglas como ator principal.
“Esse filme tinha uma cena de dirty dancing mas eles decidiram retirá-la e passaram logo para o sexo”, conta Eleanor Bergstein na série. A partir daí, teve sempre vontade de explorar mais o tema. Era muito amiga da pessoa que se tornaria a produtora do filme, Linda Gottlieb (iam até juntas para encontros duplos).
Quando Gottlieb ouviu a história da vida de Bergstein — e percebeu que seria a base de um guião — passou a adorar o termo “dirty dancing”. “Eu deixei cair o garfo e disse: esse é o título. A partir daí, construímos a história.”
Escreveram o guião e Gottlieb, que tinha bons contactos com os estúdios da MGM, apresentou a proposta para perceber se eles estariam interessados em financiar a produção. O presidente da MGM adorou e disse que queria avançar com o filme. “No dia seguinte foi despedido, e todos os meus projetos foram cancelados”, disse Linda Gottlieb na série da Netflix.
A seguir, apresentaram o guião a todos os estúdios que conheciam: dos grandes aos médios, passando pelos pequenos e os independentes, receberam 42 cartas de rejeição. Ninguém queria fazer este filme.
Eleanor Bergstein e Linda Gottlieb ficaram sem saber o que fazer a seguir, mas tiveram a sorte — a sorte mesmo — de, naquele momento, uma empresa chamada Vestron estivesse a entrar no mercado.
A Vestron trabalhava na distribuição de cassetes de vídeo e estava a fazer uma fortuna com isso, já que os estúdios só estavam envolvidos na parte de produzir os filmes. Percebendo isto, os estúdios começaram a fazer a própria distribuição e, por outro lado, a administração da Vestron achou que devia fazer o caminho oposto e produzir filmes originais.
Começaram a receber milhares e milhares de guiões rejeitados que vinham de outros estúdios. Havia literalmente camiões — cada um a levar cinco mil de cada vez — a despejar guiões num contentor de lixo da Vestron.
Os executivos remexiam e liam os guiões (a maioria dos quais era péssima) e lá chegaram a um chamado “Dirty Dancing”. Mitchell Cannold foi a pessoa da Vestron que encontrou e leu o guião. Adorou-o. Ele próprio, quando era miúdo, ia passar férias com a família às Catskills e identificou-se com aquela realidade retratada. Como explica na série documental, riu, chorou, aquilo significou muito para ele.
O filme foi aprovado pela administração da Vestron — seria a primeira longa-metragem a ser produzida pela empresa — e todas as pessoas envolvidas na produção eram completamente inexperientes. Por causa disso, foram contratar Emile Ardolino, que já tinha um Óscar num currículo, por ter realizado um documentário focado num grupo de miúdos que aprendia a dançar. Só que Ardolino também nunca tinha feito uma longa-metragem.
O orçamento era de apenas quatro milhões e meio de dólares — o equivalente a pouco mais de quatro milhões de euros — o que é uma quantia muito, muito reduzida para produzir um filme. Além disso, havia várias condicionantes, como o facto de licenciar músicas já conhecidas para passar no filme — que eram essenciais nos momentos de dança. Inicialmente até estavam a coreografar com músicas que nem iam entrar no projeto.
Grande parte de “Dirty Dancing” foi gravado no hotel Mountain Lake Lodge, no estado da Virgínia — longe das montanhas Catskills, no estado de Nova Iorque. Era um sítio barato em comparação com o original e, mesmo assim, só tinham 14 dias para filmar tudo naquele local.
O problema seguinte foi a escolha dos atores para interpretar Baby e Johnny Castle. Winona Ryder e Sarah Jessica Parker eram nomes em cima da mesa, mas o papel acabou por ir para Jennifer Grey, que foi convencida pelo pai a ir ao casting e que até àquele momento só tinha feito papéis secundários. Tinha tido algumas aulas de dança, o que era uma vantagem, mas também não era bailarina.
Já o ator que fosse interpretar Johnny Castle precisava mesmo de saber dançar. Billy Zane e Benicio Del Toro participaram em castings, mas Eleanor Bergstein queria alguém com “olhos sombrios”. E achou que Patrick Swayze era o ator ideal para o papel por isso mesmo.
A questão é que o currículo de Swayze dizia precisamente que não queria fazer papéis que envolvessem dançar. Desistiram dessa hipótese, até que Emile Ardolino foi consultado — ele sabia que Swayze sabia dançar porque vinha daquele mundo. Aliás, o ator era mesmo dançarino — a mãe dele era a maior professora de dança do Texas. Por isso mesmo é que Swayze não queria fazer mais papéis destes (já tinha feito alguns). No fundo, ele não queria ficar associado à dança para sempre.
A produção fez castings de dança entre Billy Zane, Sarah Jessica Parker, Patrick Swayze e Jennifer Grey. O par com mais química foi o de Swayze e Grey — e foi assim que tudo ficou decidido. O problema é que Jennifer não queria que fosse Patrick. Não gostavam um do outro, porque tinham tido uma má experiência anterior, no filme “Amanhecer Violento”.
“Depois, falaram durante meia hora e saíram da sala com os olhos vermelhos. Concordaram em pôr de lado as suas diferenças”, conta Bergstein na série.
Apesar disso, tiveram vários atritos durante a produção — alguns dos quais foram bem aproveitados por Ardolino, que tinha uma perspetiva bastante documental. Há uma cena em que Johnny Castle está a ensinar Baby a dançar — ela ri-se e ele está com um ar de chateado. Isso foi completamente real, diz a série da Netflix.
Jennifer Grey tinha tensão baixa e estava com pouco açúcar no sangue, por isso pediu uma travessa inteira de queijo à produção. Patrick Swayze irritava-se com estas atitudes de Jennifer ou, por exemplo, o seu uso de duplos — o ator considerava que não fazia sentido nenhum. Swayze ficou genuinamente irritado na cena com a travessa de queijo, o que acabou por dar uma grande autenticidade àquela parte do filme.
No final da história, como todos se lembram, Patrick Swayze tem de saltar do palco e rodopiar num movimento de dança. Saltou umas 12 ou 13 vezes, mas já tinha magoado o joelho, estava com imensas dores e a cena não estava a correr bem — deu uma última oportunidade à realização e foi precisamente o último take que entrou no filme.
Depois de tantos problemas para concretizar “Dirty Dancing”, a parte de lançar o filme também não foi fácil. A Vestron queria a validação de alguém importante em Hollywood e foi chamado Aaron Russo, executivo importante da indústria. Depois de assistir ao filme, só disse: “Queimem os negativos e peçam um seguro.” De seguida, abandonou a sala.
Nessa altura, havia mesmo a possibilidade de, após aquilo tudo, a produção não avançar. Foi dada uma última oportunidade quando se fez uma sessão de cinema como teste — para cerca de mil pessoas. Se não funcionasse, seguiria depois para o circuito normal de distribuição das VHS.
Só que o público que foi à sessão gostou tanto de “Dirty Dancing” que começou a bater palmas e a gritar no fim do filme. Adoraram. E de repente a Vestron estava motivada em levar o projeto para a frente.
O público alvo da produção eram os adolescentes — e a Clearasil, marca de produtos contra o acne, tornou-se o principal patrocinador. Mas exigiam que retirassem da edição final a cena do aborto (que era proibido nos EUA e altamente controverso). Eleanor Bergstein não cedeu, até porque o filme deixaria de fazer sentido.
Afinal de contas, foi sobretudo o público adulto que adorou o filme. “Dirty Dancing” esteve 19 semanas consecutivas a dominar as bilheteiras de cinema nos EUA — lucrou milhões e milhões de euros. Na altura, tornou-se no filme independente mais lucrativo de sempre. O álbum da banda sonora também se tornou um sucesso.
Ainda hoje, os atores e as criadoras da história continuam a lucrar imenso com o filme, que foi um verdadeiro fenómeno e se tornou uma história de culto. Já a Vestron, embalada pelo sucesso de “Dirty Dancing”, acabou por falir em 1991, depois de produzir vários filmes péssimos.