São 11h30 de uma quarta-feira — a de 14 de novembro — e estamos no renovado Capitólio, no Parque Mayer, em Lisboa. Salvador Martinha acaba de entrar e está maravilhado com a forma como mudaram o palco e dispuseram o espaço para que o ambiente fique mais íntimo para o seu novo espetáculo de stand-up comedy.
O humorista está a percorrer o País na sua maior tour de sempre — são 40 datas — para apresentar “Cabeça Ausente”, o seu novo solo. De cidade em cidade vai esgotando salas com um texto que começou a escrever a partir das sessões “Construção”, que fez no Cinema São Jorge.
Foi lá que testou as novas piadas — e construiu outras — com a ajuda dos amigos Bruno Nogueira, Eduardo Madeira e Luís Franco-Bastos. A próxima data da tour é este sábado, 24 de novembro, no Centro de Artes e Espetáculos de Guimarães. Na semana seguinte, atua no Fórum da Maia.
A tour de “Cabeça Ausente” ainda vai passar por Alcobaça, Seia, Viseu, Estoril, Leiria, Aveiro, Póvoa de Varzim, Rio Maior, Braga, Funchal, Ponta Delgada, Castelo Branco, Chaves, Caldas da Rainha, Coimbra, Faro, Beja, Lagos e Guarda — além de várias datas em Lisboa e Porto. Pode encontrar todas as informações da tour na página de Salvador Martinha.
Poucas horas antes de atuar em Lisboa, a NiT falou com o humorista sobre o novo espetáculo, a sua cabeça ausente — que inspirou tudo isto — e a paternidade, entre outros tópicos.
Ainda fica nervoso antes dos espetáculos?
Ficas sempre nervoso, só que diminuiu esse tempo. Há 15 anos, quando comecei, diziam “vais ter um espetáculo daqui a dois meses”. Dizia adeus à malta e fechava-me em casa com uma mantinha. Ficava com uma hipotermia, neurótico, a dizer que tinha de trabalhar e depois não fazia nada. Agora fico nervoso quando se tem de ficar, que é uns bons cinco minutos antes. Portanto vivo o meu dia a dia, tudo normal. Cinco minutos antes fico nervoso porque os nervos ajudam à concentração. Se estás demasiado relaxado não é bom.
Neste caso, que é a sua maior tour de sempre, são os cinco minutos de cada espetáculo.
Sim, em 40 datas vou ficar 200 minutos nervoso. Ainda é, ainda é, são quase três jogos de futebol nervoso. Mas está repartido.
Quando começou a preparar este espetáculo?
Comecei a escrever o texto em junho. Este foi talvez o processo mais intenso que tive e o mais fixe dos últimos anos. Porque juntei-me a um grupo de amigos: ao Bruno Nogueira, Eduardo Madeira e ao Luís Franco-Bastos e fizemos 45 espetáculos no São Jorge para 30 pessoas [as sessões “Construção”]. Foi um texto muito menos solitário do que ir para casa sozinho, com uns óculos, comer umas Ruffles enquanto faço piadas e rio-me e não está ninguém a ver. Ali estava a testar material — mas fui mais um ladrão de material do que um construtor. Dávamos dicas uns aos outros, foi escrever um espetáculo com buddies. Tínhamos poucas pessoas a ver, bilhetes a 5€ e menos pressão. Isso permitiu-me arriscar mais e não ter de ser um vencedor. E acho que se refletiu, este espetáculo é mais arriscado.
O que é esta “Cabeça Ausente” que tem e que é o título deste solo de stand-up?
Porque estou a falar contigo — tenho um défice de atenção — e de repente… [faz cara de completo ausente]. E depois tens de me tocar com o rato, se não vai para screensaver. Só que já não estou sozinho nesta cabeça ausente, porque acho que hoje em dia as pessoas são todas um bocado ausentes.
Há demasiados estímulos?
Exato. Tu já não vês só televisão, isso não existe. Estás a ver televisão, estás ao telemóvel e às vezes fazes o triplete — quem é que nunca fez? —, com telemóvel, computador e televisão. E aí estamos mesmo saciadinhos, na nossa droga, que temos de estar ligados.
Mas neste caso o público que vem ver este espetáculo convém não estar com a “Cabeça Ausente”.
E esse é um desafio interessante. Sabendo disso hoje, o comediante tem de ser ainda mais dinâmico. E a coisa que mais me irrita é estar num espetáculo e de repente: uma luzinha de ecrã. Existe uma má educação do público, porque nos minutos iniciais ainda estão ali agarrados ao cavalo, e querem mais um chuto antes de ficarem uma hora [sem aquilo]. Agora, se começo a ver dois telefones ao minuto 40 do show, aí já fico chateado. Porque é quase como se fosse uma mini crítica, às vezes.
Outras vezes pode ser só uma emergência.
Sim, tipo: uma avó morreu. Não é uma falta de respeito, pronto. Mas era giro de contabilizar: há um humorista que faz um espetáculo em que ninguém vai ao telemóvel, ou outro em que toda a gente vai. É quase como um calduço no humorista.
O Salvador costuma interagir com as pessoas no público, numa de improviso. Nesses casos também costuma chamar a atenção às pessoas que estão a mexer no telemóvel?
Sempre, sempre. Destruo as pessoas. Porque é uma falta de respeito, nem tanto para mim que já estou mais habituado, mas incomoda os outros, distrai. Quando estou no cinema, está alguém no WhatsApp e eu espreito. Vejo corações, será uma amante? Gosto de ver o nome, o que é que a pessoa está a fazer. É como a questão das crianças. Este espetáculo é para maiores de 16, mas um pai pode trazer uma criança de 11 anos. Eu estou na boa porque o pai decidiu trazê-la e sabe ao que vem, mas pode incomodar as pessoas do lado. Uma pessoa ao lado pode inibir-se de rir porque está com uma criança. Mas os miúdos estão sempre muito abertos, quanto mais nova é a plateia mais sorridente está. No “Construção” vi muito isso. A predisposição que as pessoas têm para se rirem quando são mais novas é muito maior. Os putos estão sempre na boa, só que às vezes dou-lhes referências que não percebem: eu digo que os pais depois explicam.
Gostaria de fazer um espetáculo de stand-up para um público mais jovem?
Primeiro era bom porque ia ficar rico. Ticketline, o que é que domina? Panda, os 7 Anões, Rapunzel, não sei, estou a dizer personagens ao calhas. Se fizesse um espetáculo “Salvador e o Mickey” curtia. Porque ia estar sempre cheio, os pais não têm programas — agora tenho uma filha de três anos, então sei que ao sábado queres entreter a tua filha. Tudo o que é com os 7 Anões e o Mickey está a valer. Por isso acho que era giro um espetáculo de stand-up infantil. Era um grande desafio. Porque tens sempre os dois públicos: eles não vêm sozinhos. “Sopa? Quem é que curte de sopa? Buuu.” Mas acho que agora com a minha filha vou ter capacidade para perceber o que ela não gosta.
E quando tinha a idade destes miúdos, já era um cabeça ausente?
Era muito distraído. Primeiro porque os professores não tinham muito jeito para ser professores. Sei que é chato dizer isto, mas não há bem um curso para professores. Nem todos têm talento para falar com uma plateia. Deviam ser os mais talentosos. Por ano havia dois professores que tinham jeito, com os outros ao minuto dois já estava eu desligado. E depois também não tenho uma boa cara quando desligo. E era muito mau aluno, ia sempre para a rua, era o 1048, este número ficou-me na cabeça. “1048, rua.” Porque eu tentava fazer brincadeiras, sempre tive muita necessidade de palco e não tinha palco.
Era o palhacinho da turma?
Era, eu organizava os Globos de Ouro todos os anos. E depois manipulava de forma a ganhar sempre um ou dois Globos. Ganhava o Mais Simpático, que era o mais forçado, manipulava nos bastidores, e o Mais Engraçado. Penso que nesse não havia discussão, acho que fui tetracampeão.
Tudo isto se passava nas aulas?
Era uma aula especial, tirávamos uma aula só para isso. Mas depois acusavam-me de manipulação e peço desculpa, anos mais tarde, por isso. Mas é assim, é como os Globos de Ouro verdadeiros [risos].
Portanto, essa cabeça ausente esteve sempre presente?
Exato, agora, de onde é que isto vem? O que acontece aqui para haver pessoas que são distraídas e pessoas que não o são? Não sei, mas neste espetáculo falo sobre isso e é como — sabes quando há um jogo de futebol e acaba o jogo e o árbitro dá os minutos de compensação? No fundo isto são 70 minutos em que estou a devolver às pessoas o tempo em que estive ausente. Mas nunca ninguém está a pensar em branco. Estamos sempre em qualquer sítio. E normalmente estou no futuro. E gosto disso na comédia, a capacidade de preveres o futuro quando estás em palco. Estou em frente a uma plateia, sinto-me numa nuvem a dar festas a um gato, “eu sei o que se vai passar na próxima hora”. E isso dá-te uma sensação de poder.
Há alguma coisa que faça sempre antes de subir ao palco, nem que seja para combater os cinco minutos de nervosismo?
Sou um bocado maniento, mas tentei limpar sempre as superstições. Acho que o espetáculo corre sempre melhor quando como pouco, porque estás mais aguçado, não estás mole. Tenho de ter fome e de me sentir flexível. Com os nervos ficas sempre mais contido, portanto quanto mais flexível… E estou mais solto e tenho cada vez menos medo, por isso as piadas e o acting têm que ser feitos totalmente. Muitas vezes sinto que os stand up comedians, como não têm uma escola do teatro, não dão tanto no acting. Damos muito mais no texto. E se é para fazer um senhor de boné que está coxo, vamos fazer o melhor senhor de boné que está coxo. Tens de estar mesmo na cena e isso torna-te mais físico.
A digressão começou em outubro.
Há vários artistas — sejam músicos ou escritores — que dizem que o facto de serem pais mudou a sua obra. Isso aconteceu consigo?
Deixa-me fumar um cigarro imaginário e pensar nessa pergunta. Não sei, a mim não me amoleceu nada. Seres pai torna-te é mais responsável.
Isso reflete-se no seu trabalho?
Não, só se for em ter mais exigência. Da mesma forma que senti isso com a minha namorada. Quando me apaixonei e ela vinha ver o meu espetáculo, sentia-me mais nervoso porque queria que ela pensasse que eu era o melhor. Ter uma pessoa que gosta de mim dá-me responsabilidade. Imagina, estou em Fafe. Não estão lá os meus pais, não está a minha mulher, aquilo vale tudo e pode dar a uma irresponsabilidade que às vezes pode passar para um desleixo. Quando tens uma mulher que gosta de ti e uma filha também, sentes-te mais responsável. Mas não vou amaciar os meus temas, e acho que este é o meu pior espetáculo de todos em termos de limites. Reflito um bocadinho sobre isto: de que é que podemos rir e não rir? O que é errado ou certo?
Portanto, uum espetáculo em que esteja alguém da sua família na plateia poderá ser um bocadinho melhor.
Sim, mais sharp e exigente. E depois há outra coisa: hoje vem a minha mãe e eu tenho aqui piadas sinistras. Há dois tipos de comediantes: os que mudam as piadas quando vem a família, e aqueles cujos pais ficam chateados com eles. Eu sou desse segundo tipo. Portanto, não posso mudar, tenho de ter coragem. A minha mulher também vem hoje e há aqui piadas que são lixadas, falam de outras mulheres, do que é que os homens casados pensam em relação às outras mulheres. Abro um bocadinho essa cabeça e pode ser chato.
Esta é a sua maior tour de sempre, com datas por todo o País, apesar de várias delas terem intervalos grandes. É muito desgastante?
A parte desgastante tem tudo a ver com as drogas e o álcool, isso é que é o desgaste da tour. E é uma gestão disso: já não dou nas drogas hoje em dia, álcool às vezes bebo um vodka Red Bull antes dos espetáculos, mas quando era puto bebia muito mais. Era capaz de beber seis gins antes de entrar. Multiplica seis gins por 40: estamos a falar de 200 e tal gins em três meses. Faz mossa. Agora bebo só um vodka Red Bull ou mesmo só uma Red Bull.
Para ter energia?
Sim, porque agora tenho de gerir a minha energia de outra forma. Energia para o espetáculo é muito importante e tenho de gerir isso com a minha energia familiar. Tenho de fazer um bom espetáculo, acordar no dia seguinte de manhã, voltar para casa — e não volto para casa para me esparramar. “Ah, tragam-me um cosido”. Não, não. Tenho uma filha de três anos a querer brincar de um lado para outro e por isso aumentei o tempo da minha vida em que não posso estar esparramado. Estou numa altura da minha vida em que não posso ser mole. Tenho de estar sempre ser forte. Este é o segredo da tour.
O que faz para se abstrair desta rotina desgastante dos espetáculos? Ou está sempre em modo esponja criativo?
É, isso é o mais cansativo da minha vida: o modo esponja que não consigo desligar. Adorava poder desligar. Mas o que me faz mais desligar é estar com os meus amigos, porque me estou sempre a rir com eles. Eles é que são os mais engraçados — eu no meu grupo sou o sétimo mais engraçado, nem sequer estou a meio da tabela. São todos grandes personagens e choro a rir com eles.
Levou alguns deles ao Coliseu dos Recreios no último espetáculo, não foi? Já pensou em fazer algo mais sério com estes amigos que não são humoristas, mas que são engraçados?
Já, há uma ideia. E estou a tentar ter a autorização deles. Pensei em escrever um livro, ou fazer uma série, chamada “O Banquinho”. Porque no meu espetáculo do coliseu que foi transmitido na RTP, fui buscar o banquinho em que nós, quando éramos putos, íamos fumar umas ganzas. Levei o próprio banco para o coliseu e fiz-lhes a surpresa. De repente, aquele grupo está ali no coliseu. E gostava de fazer algo só baseado nestas personagens. Seria um livro ou série juvenil, tipo “Morangos com Açúcar”, mas com piada voluntária. E não aqueles diálogos que não existem: “Espera, Joana. Já acabaste o teu sumo de laranja?” E também gosto muito de jogar à bola, relaxo muito, mas mesmo assim dou por mim a ter ideias a meio de um cruzamento ao segundo poste. Mas é jogar à bola, estar com os amigos e a família, sem dúvida: são as três coisas.