É na Baixa de Lisboa apinhada de turistas, num dia de sol, que nos encontramos com Ricardo Ribeiro para falarmos sobre o novo disco, “Respeitosa Mente”, editado a 26 de abril, e o caminho que o trouxe até aqui. À procura da sombra e de um sítio mais fresco para nos sentarmos, acabamos por ir parar aos Terraços do Carmo.
Ricardo Ribeiro está exausto fisicamente — acabou de fazer um treino de kickbox ao ar livre — sendo que nos últimos anos perdeu dezenas de quilos, depois de perceber que tinha de mudar de vida.
Foi criado no Bairro da Ajuda, também em Lisboa, e a sua infância difícil é conhecida. Tentou suicidar-se com apenas 12 anos e já antes tinha o sistema nervoso descontrolado, o que fez com que ganhasse bastante peso. Passou várias dificuldades, sobretudo relacionadas com o divórcio dos pais.
O fado foi aquilo a que se agarrou para superar os problemas e ganhar a vida quando mais precisava. Depois de alguns anos a cantar em festas e bares, gravou o primeiro disco, “No Reino do Fado”, em 1998.
“Na altura era paupérrimo, tinha muitas dificuldades, ganhava três contos e 500 escudos”, conta o fadista à NiT sobre o primeiro trabalho. “E só trabalhava dois dias por semana. Podia dizer que foi importante artisticamente, mas é mentira, iria estar a ser um grande aldrabão. Foi importante porque tinha de vender CD, tinha de ganhar o meu. Sabia lá eu, cantava tão mal.”
Antes da entrevista, Ricardo Ribeiro fuma um último cigarro — diz que também está a reduzir o tabaco. O cantor de 37 anos recorda como na capa de um dos seus álbuns aparece a fumar (e que isso lhe valeu umas valentes críticas na altura).
“Houve um senhor que diz que gostava muito da minha música mas nunca mais me ouviu porque a mulher morreu de cancro do pulmão e eu não deveria dar aquele exemplo”, conta, antes de começarmos a conversa a sério. Leia a entrevista e veja o vídeo onde o músico fala da influência que a filha, Carolina, tem na sua carreira.
Qual é a primeira memória musical que tem?
A minha mãe a cantar. Tem uma voz linda.
Foi uma coisa permanente durante a infância?
Foi, porque a minha mãe sempre cantou enquanto fazia as lides da casa. Fado e canções populares. Mas depois tenho a memória da rádio, a música que passava na época, e os discos da minha tia que eu ouvia. Foi isso tudo que me foi moldando. Mas, curiosamente, a primeira memória que tenho não é de som. É de cheiro. É o cheiro da minha mãe. Não sei se é alfazema, se é rosmaninho, mas cada vez que o sinto desperta-me logo os sentidos.
Foi fácil e natural mergulhar no mundo do fado, portanto.
Honestamente, nunca pensei muito. As coisas foram-me acontecendo.
Nunca teve resistência ao fado?
Não, nunca tive. Tive só por causa dos nervos de cantar ao vivo. Também nunca tive resistência a nada na vida. Quero que a vida me dê tudo o que tem para dar, seja bom ou mau. Até porque nada é verdadeiramente bom ou mau. E a vida é isso mesmo: aceitar as coisas. Claro que o difícil é pôr isso em prática, custa, não penses que sou um guru… é mentira. Tenho muitos momentos de fraqueza, tenho os meus caprichos como homem ou contradições.

O colégio interno marcou-o muito.
Qual foi o momento em que percebeu que era assim que devia viver e encarar a vida?
É uma consciência que se conquista todos os dias. Há um momento em que, quando tens tantas vezes o sofrimento diante de ti, tens de começar a fazer perguntas sobre porque é que sofres, qual é a raiz desse sofrimento, que valor tem determinada coisa para que te faça sofrer. E não é que eu saiba como isto se faz, mas tenho a consciência de que se pode fazer.
O Ricardo já falou várias vezes dos momentos difíceis que passou na infância, com o divórcio dos pais e uma tentativa de suicídio aos 12 anos. Tenta esquecer esses momentos ou reflete muito sobre eles para os aceitar, como estava a dizer?
Aqueles que pude, resolvi-os. E os que não pude resolver, vou resolvendo a cada dia, às vezes pensando em como poderiam ter sido diferentes. Mas a grande maioria está resolvida, como as questões com a minha mãe. Outras ainda não consegui porque as pessoas têm um ritmo diferente e há pessoas que precisam de mais tempo do que eu. Então há que aceitar e ir andando devagarinho. Chega um dia em que se resolve. Até há pouco tempo havia duas pessoas com quem não falava, e disse: chega de acartar coisas da infância. Resolvi falar com eles, já tinha passado tanto tempo.
O colégio interno onde esteve durante a adolescência foi muito importante?
Foi importante para tudo. Estive lá dos 13 aos 16 ou 17 anos, não sei bem. Tive pena de não ter ficado lá mais tempo mas, por outro lado, não posso ter pena porque não sei como seria a minha vida se não tivesse saído. Gostava muito daquele colégio e gostava de ter estudado um bocadinho mais.
Porque é que saiu naquele momento?
O meu pai deixou de ter dinheiro para pagar. Ainda que um dos senhores padres tivesse feito os possíveis para eu ficar, baixando bastante a prestação, não foi possível. O meu pai não conseguia pagar e tive de me vir embora.
Nessa altura já cantava.
Já, nas festas da escola, e ao fim de semana a minha tia levava-me a cantar fado. E a vida foi acontecendo, nunca pensei em nada. Aos 19 ou 20 anos comecei a trabalhar profissionalmente porque não tinha emprego e vim para o fado porque era a única maneira que tinha de sobreviver. Por isso é que devo tudo ao fado. Independentemente de fazer discos diferentes, devo tudo ao fado.
Mas na altura imaginava-se noutra profissão?
Quis a via do sacerdócio. Depois, um padre que era um homem muito lúcido e generoso comigo e com ele próprio, disse-me que não era por ali e tinha toda a razão. Ainda quis ser veterinário, por causa da convivência com os animais, mas foi sempre a música.
Como foi gravar o primeiro disco de todos? Foi bastante cedo, em 1998.
Foi um horror, um horror. Foi uma decisão ótima porque tinha que ganhar uns tostões na casa de fados a vender CD. Na altura era paupérrimo, tinha muitas dificuldades, ganhava três contos e 500 escudos [que, com a inflação, atualmente seria equivalente a 25,80€]. E só trabalhava dois dias por semana. Podia dizer que foi importante artisticamente, mas é mentira, iria estar a ser um grande aldrabão. Foi importante porque era importante vender CD, tinha de ganhar o meu. Sabia lá eu, cantava tão mal. E que me perdoem todas as pessoas que gostam dele, porque há muita gente que me diz isso e eu fico doido.
Nunca ouve as músicas desses tempos?
De tempo nenhum, não gosto, é horrível. Assim que estão feitas as misturas, nunca mais oiço. Nunca mais ouvi o “Respeitosa Mente”. É um processo que não tem fim se estiver sempre a ouvir. E não acho os meus discos fantásticos, são bons, mas são importantes porque sei que faço bem a muita gente. Ainda há pouco tempo uma rapariga veio ter comigo a dizer-me que a mãe dela se tinha suicidado há dois meses — e que a única coisa que a tem suportado, porque ficou com uma irmã para criar, é a minha música, ouvir-me cantar. Aí eu sei que estou no caminho certo.
Quando é que teve vontade de fazer este disco menos tradicional, o “Respeitosa Mente”? Foi criado em conjunto com o João Paulo Esteves da Silva e o americano Jarrod Cagwin.
Sempre me alimentei de outra música, sempre tive outras influências e trabalho com muitos músicos fora do fado. Mas, neste caso, o “Respeitosa Mente” vem de uma necessidade interior. Era algo que era importante fazer e não sei muito bem explicar. Só que, pela história que tenho no fado e pelas pessoas com quem convivi, a mim não me era permitido cantar no fado este tipo de poesias. Então resolvi construir um disco totalmente diferente.
Além de ouvir muita música, a sua outra grande paixão são os livros. Sei que tem fases em que lê muito e outras em que faz pausas. Neste momento, está em que situação?
Neste momento, por acaso, estou a ler muito. Estou a ler um livro do professor Agostinho da Silva que se chama “Páginas Esquecidas”. Também li um da Maria Amélia Neto, uma senhora que acho que morreu nos anos 60 e tem uma poesia muito interessante.

Ricardo Ribeiro não gosta de ouvir as suas músicas antigas.
Essa paixão pela leitura nunca o levou a pensar que deveria escrever um livro?
Vou escrevendo coisas. Agora, a 1 de junho, cantámos uns versos meus no CCB. Foi a primeira vez. Eu tinha dito que nunca os iria mostrar mas, afinal, nunca digas nunca [risos]. Já fui convidado várias vezes para escrever um livro e gostava muito de começar um romance, tenho uma ideia para isso. Mas não tenho capacidade para escrever, no sentido de organização. Tenho a parte da imaginação, mas depois o resto… fico um bocadinho frustrado com isso. Mas, um dia, quem sabe.
Entre discos, o melhor sítio para encontrar o Ricardo é n’O Faia, a casa de fados do Bairro Alto. Qual é a sua regularidade lá?
É toda. Quer dizer, agora tive várias entrevistas, ensaios e concertos, só volto lá a [esta terça-feira] 4 de junho. Quando as coisas acalmarem, vou lá todos os dias, exceto ao domingo. Eu gosto, faz-me bem. Não tenho saco para ficar à noite em casa a ver séries. Para ler, prefiro ler n’O Faia. E não gosto muito de pensar na música como trabalho. Trabalho é trabalhar ali nas obras, a música é um prazer. Claro que envolve esforço e dedicação, é um trabalho porque temos de dar muito de nós, mas gostava de arranjar outro substantivo. É trabalho mas não gosto de lhe chamar trabalho.
O Faia, assim como a maioria das casas de fado conhecidas, vivem muito dos turistas. Muda alguma coisa pelo facto de estar a cantar para turistas?
Não muda nada porque não ligo nenhuma a ninguém. Isto parece mal, é violento, as pessoas podem ficar tristes, mas estou no meu mundo. Fecho os olhos e canto. Posso estar nervoso, chego ao palco em frente da plateia, fecho os olhos e esqueço-me. Ao fim de um tempo já não tenho noção de espaço e tempo. Isso é a música, essa viagem. Para mim, é. O público é importante porque, quando canto, canto para as pessoas, mas é importante que me abstraia para conseguir fazer a viagem e para que o público venha comigo.
N’O Faia há muitas pessoas que estão a ter o primeiro contacto de sempre com o fado. O que é que lhe dizem quando o ouvem cantar?
Muitas pessoas saem dali a chorar, outras saem muito felizes, outras não dizem nada porque lhes passa completamente ao lado. As opiniões são várias, a maneira como cada um reage é diferente. Mas houve pessoas que saíram dali a pedir-me o contacto e a seguir-me nas redes sociais, a comprar discos e a virem de propósito a Lisboa para assistirem a concertos. Há um casal holandês que vive no Algarve, que me conheceu cá e, cada vez que dou um concerto em Lisboa, vai ver-me. E vão a O Faia pelo menos duas vezes por ano. Outra pessoa é uma jornalista italiana que é crítica de gastronomia, que se tornou uma pessoa quase da família desde 2010. Chegou a ir de Milão a Helsínquia para me ver cantar. É incrível. Não é de estar grato à vida? Não só por isso, mas olha este sol, este vento. Claro que as coisas magoam, claro que a vida às vezes é terrível, mas olha para isto, estou aqui tão bem.
Apesar de o fado ter um lado bastante trágico.
Sim, mas essa tragédia é para te ensinar, para que possas perceber como a vida flui, não é uma coisa má. Eu uso a tristeza como fonte de energia, de criatividade, não como uma fonte de inércia.
E vai cantar para sempre?
Cantarei para sempre, a não ser que haja alguma fatalidade. Mas, mesmo que vá embora desta nossa realidade, alguém há-de ouvir e, se alguém ouvir, eu viverei. É como a Amália diz: se alguém gosta de mim, algo de mim sobrevive. Ela está certa.