Rebenta a bolha para quem ainda vive dentro de uma. 2017 fica na história como o ano em que o hip hop ultrapassou o rock como o género de música mais ouvido nos EUA — segundo dados da Nielsen, uma auditora especializada que analisou, entre outros, os números de vendas e de escutas nas plataformas de streaming.
Não é propriamente uma surpresa, foi antes um processo gradual que se tem intensificado desde o início do milénio — primeiro com o sucesso de Eminem e 50 Cent, numa altura em que algumas das bandas mais populares de rock misturavam as guitarras com o rap: Linkin Park, Korn, Rage Against The Machine ou Limp Bizkit são algumas delas.
O fenómeno prosseguiu com a ascensão de nomes como Kanye West, Lil Wayne ou a chegada de Jay-Z a um universo mais pop. Depois, e chegando ao presente, assistimos à força do rap com uma biodiversidade que nunca antes teve.
A contracultura anti-sistema que o hip hop sempre foi, desde os primórdios nos anos 70, nos bairros degradados do Bronx, em Nova Iorque, acabou por se tornar a cultura pop global — até porque há décadas que o género rompeu as fronteiras americanas e se instalou um pouco por todo o planeta. No meio da miséria e das lutas de gangues de rua, uma nova cultura nasceu quando nas festas do bairro começaram-se a usar dois gira-discos, em vez de um, a passar o mesmo tema. Foi DJ Kool Herc o autor dessa técnica, que permitia criar um loop, uma repetição de sons empolgante, para as pessoas dançarem nas festas. A partir daí, surgiram os bboys — os bailarinos do breakdance —, os writers (que espalhavam a assinatura dos grupos em graffitis pela cidade) e os rappers, que no início eram apenas MC (mestres de cerimónias), e diziam algumas palavras durante a festa. A arte substituiu a guerra, mas a competição manteve-se.
O rap ainda é associado a duas coisas: ou música zangada de intervenção, e da descrição de realidades difíceis; ou música supérflua de festa, com a ostentação de luxo: carros, fios brilhantes e mulheres (é o que acontece quando os miúdos pobres do gueto de repente se deixam delirar com o inesperado dinheiro da sua arte). Obviamente, o espetro é muito maior do que este, e cada vez mais — tanto em temas como em sonoridades.
Kendrick Lamar é, sem grandes dúvidas, o melhor nome da nova geração. Herdeiro do jazz e da soul, mas também do gangsta rap de Los Angeles, o rapper trouxe de volta a contestação política ao hip hop a um nível mainstream. Kendrick Lamar beneficia do equilíbrio perfeito de ser tão adorado pela crítica como pelo público, de ter tanto sucesso artístico como comercial, de ser ouvido tanto pelos mais dedicados e especialistas fãs do género àqueles que ouvem música pop e “de tudo um pouco”. Foi o destaque da “Forbes” na icónica capa anual dos The 30 Under 30, sobre o trabalho de personalidades importantes com 30 ou menos anos.
Este ano lançou “DAMN.”, o quarto álbum de originais, considerado de forma unânime como um dos melhores do ano — a “Rolling Stone”, a “Pitchfork” ou a “Vulture” puseram mesmo o disco no topo da lista. A presidência de Donald Trump veio reforçar o regresso à intervenção política de outros rappers. Joey Bada$$, filho pródigo da escola de Nova Iorque, lançou este ano “All-Amerikkkan Bada$$”, outro dos discos do ano, carregado de crítica social, mesmo que tenha menos público e vendas.
No topo da pirâmide da música pop global está Drake, o senhor canadiano que conjuga hip hop com ritmos R&B e dancehall. Os últimos anos têm estado preenchidos de novos trabalhos. “One Dance” e “Hotline Bling” talvez sejam alguns dos singles mais populares, mas toda a carreira de Drake esteve cheia de hits. “More Life” foi o disco que chegou este ano, batendo mais recordes de streaming e tornando-se o sétimo projeto de Drake a estrear como o disco número na tabela da “Billboard”.
Não só dentro das fronteiras do hip hop, mas também o R&B moderno e a música negra pop têm chegado a patamares cada vez maiores. Nos números do Spotify a um nível mundial, por exemplo, o britânico Ed Sheeran foi o artista mais ouvido do ano — mas é seguido por uma tríade composta por Drake, Kendrick Lamar e The Weeknd. Nos EUA, três dos cinco temas mais ouvidos no Spotify em 2017 são de rap: “HUMBLE.”, de Kendrick Lamar”, “XO TOUR Llif3”, de Lil Uzi Vert”, e “Congratulations”, de Post Malone com Quavo.
Outro fenómeno de 2017 foi o rapper 21 Savage. É um dos maiores representantes do subgénero trap — mais eletrónico, melódico, com temas a falar mais de usar drogas em vez de as vender, como nos velhos tempos. Este ano estreou-se com “Issa Album” e lançou ainda “Without Warning”, trabalho colaborativo com o produtor de hits Metro Boomin e Offset.
DJ Khaled, Travis Scott, Lil Yachty, Migos, Childish Gambino, XXXTentacion, Nicki Minaj, J. Cole, A$AP Rocky, Gucci Mane, Chance The Rapper, Wiz Khalifa, T.I., Tyler, the Creator ou Future, entre tantos e tantos outros, tornaram-se nos últimos anos algumas das principais estrelas da música pop mundial — mesmo que seja sobretudo para as gerações mais jovens, e muitas pessoas não se apercebam disso. A bolha, lá está. A Internet mudou tudo e estes músicos já não precisam dos intermediários tradicionais, como a televisão e as rádios, para chegarem ao seu público. Agora basta fazerem uma Insta Story.
A verdade é que esta não é uma realidade exclusiva dos EUA, até porque todos conhecemos o poder que a cultura pop americana tem em influenciar a de outros países. Mas o contágio do hip hop começou há mais de 20 anos e o rap ganhou em cada local do mundo características específicas (basta ouvir os beats com samples de fado de Sam The Kid ou Stereossauro).
O Reino Unido também tem assistido a uma maior popularidade do rap com o subgénero britânico grime, com instrumentais acelerados, intensos e agressivos, que surgiram de estilos de música eletrónica como o jungle ou o UK garage. Skepta ou Stormzy são alguns dos principais nomes deste fenómeno — vale a pena ouvir o EP “Vicious” e o álbum “Gang Sings & Prayer”, respetivamente, editados este ano.
Em Portugal a tendência não é diferente. Há mais de 20 anos que se faz rap no País, e, apesar dos picos de moda que foram existindo, nunca houve nada como agora, em todos os aspetos.
Para se ter uma noção, a música portuguesa com mais visualizações de sempre no YouTube — plataforma fundada em 2005 — chama-se “Ca Bu Fla Ma Nau”, é uma faixa de rap (nada pop) com um ano, e metade dela é rimada em crioulo. Pertence a Piruka (com a participação de Mota JR), o rapper português mais popular do momento. O tema tem mais de 15 milhões de visualizações e o canal de YouTube do rapper soma mais de 100 milhões, distribuídos por todos os vídeos que tem, além de ser um dos músicos mais ouvidos no Spotify em Portugal.
Não é caso único, de todo. Dillaz, Holly Hood, Wet Bed Gang, 9 Miller, Jimmy P, ProfJam ou Slow J, entre tantos outros da nova geração de rappers, somam milhões e milhões de escutas nos números das plataformas de streaming. As grandes editoras demoraram mas não resistiram ao fenómeno: o rapper Valas assinou pela Universal (e vêm mais a caminho); e a Sony fechou contratos com Holly Hood, Bispo e os Força Suprema, tudo no último ano.
Tal como nos EUA, a diversidade de estilos é enorme. Este ano é obrigatório ouvir trabalhos como “The Art of Slowing Down”, de Slow J; “Black Gipsy”, de SP Deville; “Nada é Por Acaso”, dos Grognation; o disco homónimo dos Beatbombers; ou “Stracciatella & Braggadocio”, de Blasph.
O caso reflete-se ainda nos festivais de música. Se há cinco anos era raro o rapper que subia ao palco de um dos principais eventos no País, agora é difícil encontrar um que não tenha. Sem ligar muito ao próprio nome, o Super Bock Super Rock tomou a dianteira e desde 2016 que tem um dos três dias de festival dedicado ao hip hop. Kendrick Lamar esgotou o festival nesse ano, num dia em que também atuaram os De La Soul, os Orelha Negra e outros músicos portugueses do género nos vários palcos do festival. Em 2017, foi a vez de Future.
O Sumol Summer Fest alterou o chip das vibrações vermelhas, verdes e amarelas do reggae para o hip hop; o MEO Sudoeste passou a equilibrar os DJ de house com rappers; e o alternativo Vodafone Mexefest também apostou num cartaz com imensos músicos do género. Nem o NOS Alive ou o Vodafone Paredes de Coura escaparam nos últimos anos.
Os meios de comunicação tradicionais também começam a ver o género com outros olhos e é impossível estar mais de dez minutos a ouvir rádios de públicos jovens — como a Mega Hits ou a Cidade — sem ouvir rap, tanto português como internacional. Para todos os fãs que gostavam que o hip hop estivesse no sossego e fora dos holofotes, as notícias também não são más. O oceano é gigante, há espaço para todas espécies de peixes e continua a existir uma enorme profundeza cheia de talentos do underground.