Quando “Infinite” chegou às mãos dos DJ das rádios de Detroit, a receção foi tudo menos calorosa. Hip hop cantado por um branco de olhos azuis não era o embrulho mais apetecível. “És um miúdo branco, estás a fazer rap porquê? Porque é que não te dedicas ao rock & roll?”, recorda Eminem.
O primeiro trabalho, lançado em 1996, foi um fiasco — um golpe no estômago de um jovem de 24 anos que foi forçado a reinventar-se. “Depois desse disco, cada rima tornou-se mais e mais raivosa”, confessou o rapper à “Rolling Stone” em 1999, numa altura em que era já o menino querido do hip hop mundial. Tudo graças a uma reinvenção total.
O alter-ego Slim Shady fê-lo fugir do estilo de rappers como Jay-Z ou 2Pac e adotar um tom que alternava entre o cómico e o trágico. Se “The Slim Shady LP” foi o trabalho que vingou o primeiro falhanço, serviu de antecâmara para o álbum que o elevaria a um patamar de lenda. “The Marshall Mathers LP”, lançado há 20 anos, continua a ser recordado como um ponto de viragem.
Não é por acaso que esta quarta-feira, 27 de maio, o próprio Eminem irá fazer uma audição coletiva do disco em conjunto com os fãs, que poderão colocar todas as perguntas que quiserem.
Esta história poderia nunca ter acontecido não fosse a intervenção da lenda, Dr. Dre, que ajudou Eminem saltar para o nível seguinte depois do fracasso de “Infinity”. “É uma merda constrangedora. É como ver um negro a cantar country e western. Muitos à minha volta questionaram a decisão [de o contratar para a editora]. ‘Ele tem olhos azuis, é um miúdo branco’. Estou-me a cagar se ele é roxo: se lhe dás com força, eu trabalho contigo”, revelou o próprio.
“The Marshall Mathers LP” vendeu mais de 20 milhões de cópias em todo o mundo — 1,8 só na primeira semana, um recorde batido apenas por Adele em 2015 — e tornou-se num dos mais bem-sucedidos da história da música. As letras controversas tornaram o fenómeno num verdadeiro caso de estudo que provou que a controvérsia é tão boa vendedora quanto o talento.
Um rapper (ainda mais) desbocado
“Se acham que sou um cabrão, eu mostro-vos como é ser um cabrão. Se me chamarem misógino, eu sou um misógino. Se disserem que eu odeio gays, então eu odeio gays. As pessoas começaram a acusar-me de merdas, portanto eu tornei-me no que quer que elas diziam que eu era”, disse em 2000 à “Spin”, no seguimento da onda de críticas de que foi alvo, depois do lançamento do terceiro
Eminem não tinha alvos preferidos, não atacava apenas os mais poderosos ou apenas minorias. Ninguém estava a salvo da língua ritmada e afiada. De Britney Spears aos N’SYNC, ninguém foi poupado — nem a própria mãe, a certa altura acusada de fumar mais drogas do que o próprio. Debbie Mathers respondeu com um processo em tribunal por difamação e exigiu uma indemnização de 10 milhões de euros. Não teve sorte.
No auge da fama, tornou-se no ícone da MTV de início de século, mesmo quando era repetidamente criticado por outros músicos devido às letras violentas. Em 2000, deu a performance de uma década no palco dos Video Music Awards, acompanhado de dezenas de imitadores.
Nenhum tema era tabu para Eminem, que adorava tocar nos pontos mais sensíveis de um país que adora chafurdar num bom escândalo — mas que gosta ainda mais do choque e falso moralismo que o sucede. O objetivo era simples: provocar.
Dos temas violentos onde rimava sobre matar a própria mulher à caracterização dos autores do massacre de Columbine como vítimas. Eminem não queria apenas tocar no nervo, queria dar-lhe o choque mais forte que conseguisse. Pelo caminho, despertou milhares de miúdos iguais a si: um rapaz criado num bairro pobre de Detroit, numa família disfuncional com um pai ausente, cheio de raiva e de amargura. “Deus enviou-me para irritar o mundo”, disse em “The Slim Shady LP”. E assim fez.
Foi acusado de tudo: hmofobia, tendências violentas e vingativas, problemas de raiva, sociopatia. A quantidade de rótulos era longa, assim como era a conta bancária, que começou a rechear-se de milhões. E com os milhões, vieram mais problemas.
O drama da fama
No meio de todo esse êxtase, Eminem perdeu o controlo. Uma discussão numa loja levou-o a puxar de uma arma descarregada. Acabou por ser detido pela polícia. Um dia depois, o cenário repetia-se, com o rapper a atacar o homem que viu a beijar a mulher, Kim.
Os problemas familiares foram sempre um tema comum nos seus trabalhos, que serviam de escape à realidade. Em “Kim”, um dos temas mais polémicos de “The Marshall Mathers LP”, relata a forma como mata a mulher e mãe da única filha, Hailie. Poucos meses depois, Kim tentou suicidar-se e, mais tarde, processou Eminem por difamação, precisamente por causa do tema.
“Queria capturar o ambiente de uma discussão entre os dois. Nunca adivinhariam que eu lhe mostrei a canção quando voltamos a falar. Perguntei-lhe o que achava dela e recordo-me de ter dito estupidamente ‘Sei que é uma música fodida, mas mostra o quanto eu me preocupo contigo, por pensar tanto em ti e colocar-te numa música'”, escreveu no livro “Angry Blonde”, de 2000.
Conheceram-se na escola secundária e Kim, fugida de casa, foi acolhida pela mãe de Eminem. A relação começou pouco depois, sempre intermitente, até ao nascimento de Hailie. O rapper assumiu também a paternidade das duas filhas de uma antiga relação de Kim. Casaram-se em 1999, divorciaram-se em 2001, para voltarem a casar em 2006 — uma reunião que durou apenas três meses.
O trauma foi sempre um tema dominante nos temas de Eminem, uma espécie de catarse falhada. Durante a infância, sentiu sempre a falta do pai, a quem recorrentemente escrevia cartas, que voltavam sempre com indicação de “devolver ao remetente”.
Ao fim de três tentativas falhadas de completar o nono ano, Marshall desistiu. Constantemente agredido e vítima de bullying, transportou as dores para as suas letras. “Os miúdos mais novos davam-nos problemas. O Marshall era atacado muitas vezes”, confessava a mãe, Debbie.
Foram vários os episódios que marcaram o percurso trágico até ao auge de “The Marshall Mathers LP”. Do internamento no hospital com uma hemorragia cerebral depois de uma agressão na escola — o agressor tentou processá-lo por difamação, depois do episódio ter sido relatado no tema “Brain Damage” —, ao Natal em que tinha apenas 40 dólares no bolso para comprar uma prenda para a filha, depois de ter sido despedido do emprego modesto que tinha numa cozinha.
Poucos anos depois, o tipo pobre e ostracizado de Detroit tinha agora um palco e um microfone para dizer tudo o que guardava na alma. E o mundo todo a querer ouvir o que tinha para dizer.
Dos bairros de crack onde as balas entravam ocasionalmente pelas paredes para os hotéis de luxo, Eminem procurou uma vingança com um sentido de ironia, ainda que em cenários imaginados, encarados pelos seus alter-egos.
“Lidei com muita merda no caminho até ao topo. Muita merda mesmo. Quando é assim, aprendes a viver o dia a dia. Quando tudo isto aconteceu, respirei fundo, como quem diz, ‘consegui”.
“Lidei com muita merda no caminho até ao topo. Muita merda mesmo”
Festas atrás de festas, Eminem era um party animal. Envolvia-se recorrentemente em confusões que obrigavam os vários guarda-costas a intervirem, confessou na sua autobiografia de 2008. “Estava sempre todo fodido. A vida, para mim, era uma grande festa. Foi o primeiro ano em que rebentei e celebrei muito. E quando bebia, conseguia estar bem disposto — adorava toda a gente e sentia-me incrível —, depois alguém dizia uma merda que não caía bem e antes que pudessem dar por ela, não havia nada que os guarda-costas pudessem fazer para me impedir de dar socos, cuspir e pontapear”.
20 anos depois
“The Eminem Show”, lançado dois anos depois de “The Marshall Mathers LP”, foi mais um enorme êxito. De lá para cá, embora com menos fulgor, Eminem editou mais sete trabalhos. Pelo caminho, conquistou o estatuto de lenda, com tudo o que esse rótulo traz de bom e de mau. Neste último plano, a espiral descendente provocada pela turbulência levou-o à dependência de drogas e álcool.
Foi precisamente depois dos maiores êxitos que os limites do aceitável começaram a ficar turvos. “Os comprimidos que tomava lixavam-me todo. Estavam a deprimir-me e tornou-se num ciclo vicioso de depressão”, recorda.
A morte de um amigo de infância e mentor pioraram o cenário e começou a tomar um cocktail potencialmente mortífero de sedativos, opiáceos e benzodiazepinas. “Foi uma altura fodida da minha vida. Tudo o que aconteceu serviu de desculpa. Chegava a passar dias inteiros na cama a tomar drogas e a chorar”, confessa. Em 2005, foi mesmo forçado a cancelar parte de uma digressão para ser internado numa clínica de reabilitação.
Dez anos e três discos depois, Eminem era uma sombra do rapper que tomou a cena de assalto. Pesava mais de 100 quilos e chegou mesmo a ser internado, vítima de uma overdose, em 2007. As drogas eram intercaladas com fast food e rapidamente atingiu o limite. “Lembro-me de ir a um restaurante e ouvir miúdos a falarem. Um deles disse, ‘É o Eminem’. E o outro respondeu, ‘Não é nada, meu, o Eminem não é gordo”, recorda.
Entre clínicas e sessões de treino, o rapper parece ser um homem mudado. A 21 de abril, Eminem partilhou no Instagram a medalha de 12 anos de sobriedade. “Uma dúzia limpa. Não tenho medo”, revelou sobre a sua dependência do álcool.
2020 foi também o ano do regresso. Em janeiro editou o 11.º disco, “Music To Be Murdered By”, apesar da receção morna por parte dos críticos. A maior vitória, contudo, é o regresso à boa forma de um rapper que já conquistou, por mérito próprio, um lugar ao lado dos grandes. E entre todas as polémicas, detenções, dependências e críticas, há algo de que Eminem não pode ser acusado: de não saber ao que vinha. Em 1999, antes de conquistar o mundo com “The Marshall Mathers LP”, deixava o aviso a si próprio: “Ontem à noite havia pessoas a deixarem as suas mesas para eu me sentar. É de loucos. Assustador, também, porque podes cair tão rapidamente quanto subiste até ao topo”.