“Em casa, há um homem que diz amar a mulher. Costuma verbalizá-lo depois de uma sessão de pancada com cinto, cabo de vassoura ou apenas com as suas mãos rijas e fortes.” A descrição é de um livro de ficção, mas também é um testemunho de uma realidade assustadora vivida pelo escritor Nelson Nunes.
“Preciosa” chega às livrarias esta-terça-feira, 7 de maio. O primeiro romance do autor é um marcante relato pessoal sobre o sofrimento causado por um pai violento. Mistura ficção e realidade com personagens inspiradas na própria família.
A primeira memória de vida de Nelson Nunes é o momento em que ele e a mãe fugiram da casa onde viviam, depois de vários episódios de violência doméstica. Tinha três anos. Durante os oito ou nove anos seguintes, o pai continuou a persegui-los e a ameaçá-los de morte. Entretanto fugiu do País e, apesar de o escritor saber onde ele está, nunca mais quis ter qualquer contacto com ele.
Em “Preciosa”, a história é contada a partir do ponto de vista de Marco, um miúdo que teve a infância estilhaçada pelas marcas de um pai agressor, mas foi salvo mãe.
“Escrevi na primeira pessoa e foi quase como uma experiência fora do corpo, a imaginar uma criança que estava a viver aquela violência. Enquanto escrevia, o mais duro foi colocar-me na pele da minha mãe e imaginar o que ela passou.”
Este é a quinta obra de Nelson Nunes — os quatro primeiros são livros de não ficção. Custa 15,95€ e é editado pela Planeta. Antes da chegada às lojas, a NiT faz a pré-publicação de alguns excertos de “Preciosa”.
“Tenho vivido dentro de uma depressão provocada pelo meu próprio pai. É o efeito da sua maldade que me torna o pior inimigo de mim mesmo. A cada semana, há dois dias em que a ansiedade se apodera do que sou. Nessas alturas, espero-o à porta de casa, pensando que é hoje que vem para me assassinar. Pior: é hoje que Esmeralda vai ser morta às suas mãos, como tantas vezes ameaçou, mesmo quando eu não tinha um metro e meio de altura. Mas os dias passam e ele nunca vem. Sobra o medo do amanhã e todas as dores que o de hoje deixou para trás, neste despojo de mim.
Em casa, há um homem que diz amar a mulher. Costuma verbalizá-lo depois de uma sessão de pancada com cinto, cabo de vassoura ou apenas com as suas mãos rijas e fortes. A seguir, pede desculpa, diz-lhe que a ama e seca-lhe as lágrimas com um sopro e palavras bordadas de empatia, compreensão, arrependimento. Esmeralda perdoa, não pelo sentimento genuíno ou por acreditar no homem com quem casou, jurando amor fiel e duradouro, mas como técnica de sobrevivência. Se não houver perdão, a besta soltar-se-á e talvez a mate – a ela e ao filho.
[…]
Sempre que ele lhe batia, Esmeralda convencia-se de que a morte estava mais próxima. Numa tarde de folga, correu para casa tomada por uma ideia aterradora: queria saber se, além do faqueiro de cozinha, Isaac podia deitar mão a outra qualquer “arma” que lhe ditasse a sentença de morte.
Acabou por encontrar uma caçadeira no cimo do roupeiro do quarto. A tremer, subiu a um banco e apalpou o metal frio, içando-a, depois, com todas as forças do seu braço fino e trazendo-a para baixo.
Como saber se a arma era letal? Estaria carregada?
Afastou o tapete e, apontando aos tacos do chão, premiu o gatilho.
O estrondo deixou-a temporariamente surda, mas o maior impacte foi perceber que aquela arma podia ser a sua ceifeira.
“Tenho de fugir.”
Com o tapete, escondeu o buraco que a bala fizera no chão, colocou a espingarda no topo do armário e fez as malas.
[…]
À venda por 15,95€.
Era Natal, fazia frio e a lareira crepitava na cozinha da casa da aldeia. Chamar-lhe aldeia chegava a ser eufemismo, tão minúscula era a dimensão daquele punhado de casas, a maioria desabitadas, com mais de um século. O xisto das paredes procurava fazer de barreira à geada, que soprava com força para dentro dos ossos dos habitantes, envelhecidos, enrugados, secos, mas sempre resilientes e prontos a segurar uma enxada.
Eu devia ter cinco anos e ansiava pela chegada dos presentes. No calor da casa, com a barriga cheia de bacalhau – que detestava, mas não contestava – tentava conter a ansiedade, aguardando que o tempo passasse – quando somos pequenos, a distância entre minutos é maior. Queria desembrulhar presentes e ser uma criança normal, para variar.
Nada fazia prever o estrondo com que a porta da rua, feita de frágil metal, foi derrubada. Alguém dera um pontapé certeiro na fechadura, que não ofereceu resistência. Voltei-me e vi-o.
– Não! – gritou Esmeralda.
A morte é sempre uma garantia e, naquele instante, pensámos que tinha chegado para todos. Isaac empurrou a minha mãe para longe, fazendo-a tombar na tijoleira. O meu avô levantou-se e preparava-se para dar um soco ao meu pai, que se desviou com agilidade. Isaac pegou-me ao colo e ameaçou com uma voz que parecia dinamite.
– Se vocês tentarem alguma coisa, o miúdo morre.
[…]
O autor Nelson Nunes (foto: Vitorino Coragem)
Antes da fuga, Esmeralda ponderou outra saída. A mais plausível. Saiu comigo pela mão e dirigiu-se à esquadra mais próxima, que, na verdade, ficava duas ruas abaixo da nossa porta. Não deixava de ser reconfortante saber que os guardiões viviam tão perto de nós, o que determinava que a protecção se encontrava à distância de um grito.
Entrámos pela porta de alumínio, lutando com a mola que a mantinha cerrada e demos de caras com dois agentes, ao balcão: um fitava o vazio enquanto brincava com a tampa de uma caneta, o outro mexia num molho de papéis.
– Bom dia. Há algum problema? – Era o agente da caneta quem perguntava, abandonando finalmente o seu tédio, e parecendo quase agradecido pela chegada de clientela.
– Quero fazer uma queixa.
O segundo polícia tirou o rosto da pilha de folhas e analisou o rosto da minha mãe.
– Queixa? Roubaram-lhe alguma coisa, minha senhora?
– Não. Venho reportar uma agressão.
– Uma agressão?
– Mais do que uma – respondeu Esmeralda, já de voz embargada.
O segundo agente intrometeu-se na conversa.
– Alguém bateu no menino?
Fiquei confuso. A minha mãe respondeu por mim.
– Não, não. Quero dizer, foi só uma vez. E não foi bem bater. Ele só costuma bater-me a mim.
– A si?
– Costuma? – Agora eram os dois agentes. – Mas quem é que lhe bate?
Os polícias pareciam ter finalmente chegado à encruzilhada da suspeita. A mão da minha mãe tremia, pousada sobre a minha cabeça.
– O meu marido. Quase ex-marido. Estou a pensar em fugir de casa.
– Ó minha senhora!… Tenha paciência.
O agente sacudiu a mão, enxotando a minha mãe. O outro polícia voltou costas, enquanto ria e dizia entre dentes:
– Que dramatismo.
– Minha senhora, isso passa. Se soubesse a quantidade de mulheres que cá veem fazer queixa e depois não acontece nada.
– Só tenho uma sugestão para si – disse o outro, de volta à pilha de relatórios – vá para casa e entenda-se com o seu homem. Nós tratamos de crimes, não somos conselheiros matrimoniais.
– Mas ele bate-me…
– E quem é que não deu já um tabefe no marido ou na mulher? A sério, minha senhora, volte para casa. O seu marido exaltou-se, certamente, mas não tarda volta a si, pede-lhe desculpa, diz que a ama muito e o assunto fica resolvido. Passe bem, minha senhora.”