“Assunção Cristas foi abastecer o carro com 20 euros, queixando-se de que, com o combustível a este preço, não consegue pôr a oposição em andamento”, “Maria Leal não está grávida mas tem dentes novos”, “FIFA rejeita transferência de Adrien para o Leicester por atraso de 14 segundos. Tivessem assinado contrato nos Açores, parvos”. Isto aconteceu este ano e está entre aspas porque Miguel Somsen resume tudo bem melhor do que nós.
A estes episódios juntaram-se centenas de outros, agora compilados em “Resumo de 2017 para Todos” e acompanhados pelas ilustrações de Hugo van der Ding, autor de “A Criada Malcriada”. O livro já está à venda e é um dos primeiros editados pela nova chancela Libelinha.
Mais de 17 mil pessoas seguem atentamente o que Somsen escreve no Facebook e muitos dos seus posts tornam-se virais. Às vezes a discussão que se gera é positiva, outras vezes nem tanto — como há três anos, quando fez uma piada com um adepto sportinguista e recebeu ameaças de morte ao regressar a Portugal uns dias mais tarde.
Contudo, todos lhe diziam que devia “fazer um blogue ou juntar tudo num livro”. Assim foi. A ideia agora é fazer o mesmo nos próximos anos e talvez até transformar a obra num programa de televisão semanal.
Miguel Somsen é um dos responsáveis pela marca Gin Lovers — que acaba de abrir um espaço no Gourmet Experience do El Corte Inglés, em Lisboa —, trabalha no departamento de promoções da TVI e ainda passa a vida a fazer listas e a anotar tudo o que vê na televisão, nos jornais e à sua volta. A NiT falou com ele a propósito do balanço de 2017. Leia a entrevista e veja o vídeo.
Dezembro não está no livro. Como é que resumiria este último mês?
Acho que é o mês da Raríssimas, sem dúvida. Quando nos começámos a aproximar do final do ano, uma das conversas que tive com o Hugo [van der Ding] foi essa, esperemos que até ao final do ano não apareça nenhum 11 de setembro. Na verdade, apareceu uma pequena história já depois de fecharmos o livro, os jantares do Panteão.
Mas ainda conseguiram incluí-la.
Sim, e juntámos-lhe uma ilustração. Fechamos o livro e aparece a Raríssimas e a história da Igreja Universal, que provavelmente se irá desenvolver para 2018, mas estas duas histórias chocaram um bocadinho entre si e uma delas, de certa forma, anulou a outra. Olhando um bocado para o livro, ele depende também das redes sociais e do efeito que elas vão criando sobre a realidade. O tema da Raríssimas era tão forte e sumarento que secou tudo à sua volta. Agora surgiu a Padaria Portuguesa mas acho que é uma falsa história, é aquela necessidade das pessoas já depois do Natal voltarem às suas rotinas e pegarem em alguma coisa que seja um odiozinho de estimação. A Padaria Portuguesa já levou tanta pancada este ano que acho que podemos esperar um bocadinho porque eles próprios não sabem o que se passou.
Como é que filtra tudo o que lhe chega através do Facebook? O que são histórias e o que são não-histórias.
Primeiro não se faz filtragem nenhuma. Começo a receber a informação e a tomar nota de tudo o que é digno de notícia. Depois junta-se tudo o que interessa num bolo. Houve semanas em que até fiz textos demasiado grandes porque houve temas que não consegui deixar de fora.
Houve alguma história em que não tenha pegado e se arrependesse?
Acho que não, talvez pequenos objetos como o fidget spinner. Não entra neste livro porque estive sempre à espera que aquilo explodisse ou então passasse de moda.
Como gere o bombardeamento de informação que lhe chega através do Facebook?
Recebo mensagens mas também não são assim tantas. Acho que a maioria das pessoas percebe que eu também crio uma certa inacessibilidade, não sei se as pessoas me dão demasiada importância e por isso não entram em contacto. Para mim, o essencial é manter o contacto dentro da rede social e não em mensagens privadas. Mandam-me algumas coisas e às vezes até sinto alguma pressão para escrever mas não quero. Há alturas em que não tenho nada para dizer e há alturas em que escrevo coisas e depois me arrependo.
Teve recentemente alguma dessas situações?
Houve uma que acho que foi lançada por mim que foi a história do restaurante Made in Correeiros, a mais viral do ano. Na verdade, o tema já existia no TripAdvisor, só que as pessoas queixam-se nos sítios errados. Fazer uma queixa no TripAdvisor poderia prejudicar a própria marca mas o Made in Correeiros não estava preocupado com a marca. Dizer a um australiano ou canadiano “não vá a este restaurante” não tinha problema nenhum mas transformar um restaurante explorador em caso de polícia só o Facebook pôde criar. A dada altura encontrei aquela história porque alguém estava a comentar no Twitter o comentário do TripAdvisor. Eu peguei naquilo, investiguei um bocadinho, brinquei e aquilo explodiu de uma forma.
Mas arrependeu-se?
Não, acabei por não me arrepender. Há alturas em que fica fora de controlo e, se me arrepender, apago aquilo tudo. Há outras alturas em que a minha opinião inicial do post é alterada pela discussão que se segue e aí, mesmo que tenha sido induzido em erro, não apago e faço um mea culpa dentro da própria discussão.
Vai lá deixar um comentário?
Sim, também para servir de aprendizagem para mim e se calhar para aquelas pessoas que estiveram a comentar e se deram ao trabalho de me convencer do contrário. Se o debate é aceso e interessante, não vou apagar. Só vou apagar um post que foi ao lado ou que se as pessoas não estiverem viradas para ali. Se tem 10 likes em 10 minutos, está morto.
O que é que já apagou?
Não me lembro, foram coisas insignificantes. Não foram temas delicados nem nada disso.
“O Facebook é um antro onde toda a gente está a discutir e acha que tem direito a opinião”
Às vezes é preciso ir aos comentários acalmar as coisas?
Como é no meu perfil, por regra faço isso. Se for um tema muito polémico e eu não tiver tido tempo, já lá nem vou. Habitualmente ponho um like pela cortesia das pessoas terem ido comentar, mas acho que o Facebook e o Twitter nesta altura estão cheios de fanáticos. Por isso é que muitas pessoas acabaram por migrar para o Instagram, onde não se passa nada. O Facebook é um antro onde toda a gente está a discutir e toda a gente acha que tem direito a uma opinião.
Muitas vezes as pessoas comentam sem lerem até ao fim ou lerem sequer o post original.
Nada. É como os comentários online em jornais como o “Record”, “Diário de Notícias”, “Correio da Manhã”, há coisas que nem imaginávamos que as pessoas tivessem capacidade de dizer, quanto mais de escrever. É que os comentários ficam ali e as pessoas começam a insultar-se umas às outras.
Que situação é que se descontrolou mais na sua página?
Tive uma situação há dois ou três anos que se descontrolou porque não foi controlada por mim. Não foi um tema polémico, foi uma brincadeira que fiz com um adepto do Sporting numa altura em que ia viajar com os adeptos todos e eu disse: “Olha cá está, mais um beto do Sporting.” Entrei no avião, fui para a Alemanha, passei lá dois dias e quando voltei o post tinha-se transformado numa coisa louca porque um jornalista benfiquista se tinha metido na conversa e dito: “Era por uma bomba neste avião e fazer explodir aquilo tudo.” Aquilo foi uma coisa inacreditável, entraram todos os sportinguistas naquele post, não a comentar o que aquela pessoa tinha posto mas o meu post original. Quando cheguei tinha telefonemas e mensagens privadas para me matarem.
Ameaças a sério?
Sim, de pessoas que eu nem conhecia, nomes que nem posso reproduzir aqui.
Chegou a ficar verdadeiramente assustado com alguma delas para ir à polícia?
Não fui. Acho que estas coisas do Facebook são “eu vou aí e parto-te a cara toda” mas as pessoas nem saem do sítio.
Mas não é assustador?
É terrível mas acho que agora está pior. Um dos exemplos mais importantes para mim deste ano foi a situação do João Quadros. Ele é assim, não há nada a fazer, é uma instituição de humor e de liberdade. Eu posso não concordar com 90% do que ele diz mas tenho de bater-me para que ele possa dizê-lo 100% das vezes. Esta história de ele se ter metido com o Passos Coelho, brincando com o que ele tinha dito, aproveitando-se um bocadinho da doença da mulher, o humor dele foi na mouche [no Twitter publicou: “Eu a pensar que só havia uma cabeça rapada em casa do Passos”]. Ele disse no tempo certo aquilo que era preciso alguém dizer sobre o Passos, obviamente que envolvia outra pessoa mas, na verdade, não queria envolver, era uma piada sobre aquela situação. Claro que as pessoas caíram em cima dele porque não se brinca com cancro, não se brinca com criancinhas, não se brinca com isto ou com aquilo. Brinca, pode é não se ter piada mas é o risco que os humoristas correm e que mais ninguém corre. Eles estão a avançar em termos de liberdade de discurso aquilo que mais ninguém está a conseguir. O João Quadros, sendo divertido ou não, pondo o pé na poça ou não, diz as coisas que têm muitas vezes de ser ditas e está lá sozinho. Nós precisávamos, pelo menos, de mais cem como ele.
Qual foi a coisa mais inusitada que aconteceu este ano?
Gosto muito da história dos moradores de Carnide, que decidiram retirar os parquímetros da EMEL. Achei maravilhoso porque foi um início de desobediência civil raríssimo em Lisboa e em Portugal. As pessoas queixam-se muito mas depois, para fazerem alguma coisa, nada. Aqueles fizeram mesmo. As pessoas acabaram por gostar e deram os parabéns porque nós sabemos que a EMEL é uma bandidagem.
E a melhor história do ano?
O Salvador Sobral. Nós tivemos um ano completamente dividido ao meio, de euforia plena até 13 de maio com o festival, Fátima, a vitória do Benfica, as pessoas estavam completamente loucas quando chegou o verão. E depois temos a segunda metade trágica com os incêndios, o governo debaixo de fogo, alguma dissolução da harmonia entre o Marcelo [Rebelo de Sousa] e o [António] Costa.
Neste tipo de registo, e tendo em conta que é um resumo do ano, como é que se abordam temas pesados como os incêndios de Pedrógão Grande?
Eu nunca fiz humor com Pedrógão, não conseguiria. Fui escrevendo sobre isso porque era um tema que ia tendo desenvolvimentos, sem nunca imaginar que teria um segundo capítulo em outubro. Se as pessoas forem muito sérias a ler este livro vão perdê-lo todo, porque não era o meu objetivo, mas ao mesmo tempo quis dar um retrato da realidade e ela às vezes é dolorosa.
As pessoas são bombardeadas com informação nas televisões, nas redes sociais. Ficam perdidas?
O País ainda é suficientemente atrasado para depender muito da televisão e isso nota-se nas redes sociais. As pessoas estão a fazer a mesma coisa, sempre a ver o mesmo programa de televisão, a tentar encontrar um tema de debate, a polémica que vem a seguir, o que é muito engraçado num país muito dependente da televisão, que é uma coisa que já não se vê muito no estrangeiro. Continua a ser a maior arma que temos cá, é um poder imenso e as redes sociais dependem absolutamente daquilo que aparecer na televisão, para o bem e para o mal.
Custa 17,01€.
O que faz no livro e nas redes sociais é um trabalho de recolha que se faz diariamente. Onde vai anotando tudo?
É sempre no telemóvel. Se começar a recolher em vários locais, sei que me vou perder completamente. Se escrever no computador, envio logo para as notas do telefone. Fica tudo em bruto e às vezes faço um copy/paste das notícias. Depois, no final da semana, começo a editar. Dar-lhe um fio de continuidade é que dá maior trabalho.
Como é que começou tudo isto?
Na verdade, foi uma brincadeira para não esquecer. Com tudo o que nos chega diariamente, chegamos ao final do ano e não nos lembramos de nada do que ficou para trás. Este livro é mesmo o “Borda d’Água” invertido e apercebemo-nos de que realmente nos esquecemos de muita coisa.
Foi uma brincadeira que começou ainda em miúdo?
Desde sempre que tomo muitas notas e depois, com o tempo, precisei de trabalhar com este passado. O livro aconteceu também graças ao Fernando Alvim, tenho de lhe dar o crédito. Há uns anos trabalhei com ele nos “Monstros do Ano”, que recolhia também tudo de disparatado que tinha acontecido ao longo do ano anterior. Cada vez que nos reuníamos numa sala, começávamos a atirar umas ideias mas tínhamos noção de que 70% a 80% das coisas ficavam esquecidas.
Lembra-se da primeira coisa de que tomou nota?
Era um diário, aos 10 anos, mas absolutamente trivial: “Acordei às 9h, às 13h fui almoçar.” Mantive sempre a vontade de recolher a informação, fazer listas, é um jogo mas também não havia Internet. Estreava um filme com o Alec Baldwin e eu pensava: “Já vi este tipo em algum lado mas onde?” Comecei então a fazer listas e listas de filmografias de todos os atores, realizadores, argumentistas, porque escrevia sobre cinema, tinha de ter essa informação e ninguém ma daria.