Três cópias em papel de todos os jornais e revistas com artigos sobre Murakami, um disco de Miles Davis, sabonetes e um porta-moedas. Foi esta a encomenda que Maria João Lourenço colocou no correio pouco antes da entrevista com a NiT. Direção, Japão, para casa do próprio Haruki Murakami. O disco, uma edição especial, era do pai e saiu da sua coleção pessoal; os sabonetes para a mulher do escritor, Yoko, foram comprados n’A Vida Portuguesa; e o porta-moedas, em cortiça e com o padrão dos lenços dos namorados, foi para a assistente, Yuki.
Este é um ritual que a responsável pela tradução portuguesa da obra do autor japonês repete várias vezes durante o ano. Tudo porque a ligação entre os dois foi imediata e não se compara com a que tem com os outros escritores, entre eles Stephen King, que traduz. Nunca se encontraram pessoalmente mas isso pode acontecer já em setembro, se se confirmar a presença de Haruki Murakami no Festival Internacional de Cultura de Cascais. Maria João Lourenço sabe que ele terá o tempo contado mas já imaginou o roteiro perfeito para fazerem, que inclui um almoço no Museu do Oriente e uma passagem pelo MAAT.
Em fevereiro chega às lojas japonesas “Killing Commendatore” mas a versão portuguesa só deverá estar pronta em 2018. Antes, contudo, será publicada a tradução de “Homens sem Mulheres”, um livro de contos de 2014.
Nas prateleiras do escritório de Maria João Lourenço estão mais de 200 livros de Murakami com edições japonesas, italianas, inglesas — o mais repetido é “1Q84” —, que encomenda online assim que são publicados. Atualmente só se dedica à tradução mas durante vários anos foi jornalista. Passou pela “TVGuia”, pela “SIC” e pelo jornal “O Dia”. Foi aí que conheceu o também jornalista Rui Tovar, com quem acabaria por casar. É dele, que odiava o escritor japonês mas que lia todos os livros, que fala com uma ternura contagiante e garante que foi o trabalho que a salvou quando ele morreu subitamente em 2014.
Um dos objetivos que ainda tem é passar uma temporada no Japão para aprender a dominar a língua e começar a traduzir os livros diretamente dos originais. À NiT falou do primeiro contacto com o escritor, do livro que a deixou “no fundo do poço” e do encontro inusitado com outro autor, Don DeLillo, com quem agora troca cartas.
Traduziu o seu primeiro livro aos 19 anos e depois arrumou o assunto durante outros tantos.
Sim, foi uma coisa um pouco inusitada. Foi “O Nó Górdio”, do Georges Pompidou, e a minha mãe ajudou-me a passar boa parte da tradução, porque era um livro francês. Sinceramente não voltei a pensar nisso durante muito tempo. Depois trabalhei no gabinete de comunicação do IARN (Apoio ao retorno de Nacionais), ganhava 14 contos e gastava metade do dinheiro nas livrarias da faculdade.
Antes de voltar às traduções, passou por várias redações.
Comecei a trabalhar n’”O Dia”, onde conheci o meu marido, estive 18 anos na “TVGuia” e quatro na “SIC”.
Depois surgiu a oportunidade de voltar às traduções. Numa altura em que não havia computadores e Internet, como era o processo?
Comecei por escrever à máquina. As traduções eram enviadas por estafetas a um ritmo frenético, deixavam uma e levavam outra. Chegava a estar em casa sem açúcar ou leite, não tinha tempo para ir às compras.
O primeiro livro que traduziu de Haruki Murakami não foi o primeiro que leu.
Tinha lido a “Crónica do Pássaro de Corda” em inglês — que continua a ser o meu preferido e, até há pouco, era também o dele — mas foi o “Sputnik, Meu Amor” que traduzi primeiro. Aí comecei a perceber que o universo murakamiano era vastíssimo. Li-o todo primeiro, tenho a tentação de ir sublinhando e agora ponho post-its [num caderno à parte vai também anotando coisas sobre Murakami]. A tradução durou oito meses. Posso rogar-me o direito de dizer que sou a tradutora dele, embora a Bárbara Bulhosa já tenha traduzido um de não ficção.
Por que livro de Haruki Murakami é que as pessoas devem começar?
Acho que pelo “Kafka à Beira-Mar”. Embora seja para um público mais jovem, até porque a personagem tem 15 anos, é das mais deliciosas histórias que Murakami já criou. É grande mas fascinante, adorei traduzi-lo.
Ele é fechado ou acessível?
Ele é um bocadinho fechado na sua concha, não gosta de dar muitas entrevistas. É um escritor honesto, um homem sensível. Quando o entrevistei para o “i”, respondeu-me logo poucas horas depois. Sinto-me muito próxima dele.
O primeiro contacto que teve com ele foi para se apresentar ou foi já a propósito de dúvidas de alguma tradução?
Foi por e-mail, na altura do “Sputnik, Meu Amor”. Agora falo sobretudo com a assistente, a Yuki, para não estar sempre a maçá-lo, embora ele responda sempre. Depois comecei a mandar-lhe recortes das coisas que saíam dele e, na altura, enviei uma camisola da seleção, daquelas antigas. Ele teve a amabilidade de me mandar o “After Dark”, acabado de sair no Japão, e disse-me: “Vê lá quando é que começas a traduzir do japonês.” Isso deve continuar a ser uma desilusão para ele. O meu sonho era ir ao Japão e estar lá seis meses, por exemplo.
“Vou-lhe mandando ímans de Lisboa, caderninhos que tenham a ver com a nossa identidade”
Nunca lá esteve?
Não, mas gostava de viver lá, aprender a língua. Eu gostava traduzi-lo do japonês. Não tenho muitos objetivos de vida, mas esse é um deles. Temos muitas coisas em comum. Nós somos filhos únicos e eu nunca conheci ninguém que falasse assim do assunto. Não é um homem que tenha tido uma infância muito feliz, eu também não tive — não foi uma infância má mas há más recordações. Ele tem uma costela jornalística. Quando aconteceu o ataque com gás sarin, quis entrevistar as vítimas e já fez isto mais do que uma vez. Levantamo-nos os dois muito cedo, eu às 6 horas e ele às 5 horas. Tivemos os dois um percurso universitário acidentado, o “Norwegian Wood” descreve isso. As nossas referências literárias são as mesmas: ele gosta dos russos, Dostoiévski, Tolstoi, e muito de policiais, Fitzgerald, Hemingway.
Costumam falar sobre o que têm em comum?
Sobre isso não, mas estou ansiosa por vê-lo. Estive para ir a Espanha ter com ele mas estava presa por uma tradução.
Então nunca se viram.
Não, nunca. Ele sabe quem eu sou, mando fotos às vezes, até das entrevistas, e por isso ele tem uma ideia da minha pessoa.
Já falaram sobre a visita dele a Portugal?
Ainda está por confirmar. Eu ainda não falei com ele mas, a confirmar-se, quererei estar com ele fora daquilo que está programado.
Já pensou nos sítios que lhe quer mostrar?
Por acaso já. Se for em Cascais — já imagino que fique no Albatroz, onde ficou o Don DeLillo —, gostava de o levar ao Museu do Oriente, podíamos almoçar lá em cima e ter aquela vista e depois passear pelas Docas e ir ver o MAAT. Fazer turismo q.b. Vou-lhe mandando ímans de Lisboa, caderninhos que tenham a ver com a nossa identidade, de elétricos.
Sente-se ansiosa com a visita?
Vou ter de ser mais concisa porque, se ele vier, deve ser com o tempo contado. Possivelmente falaremos sobre o porquê de eu ainda não traduzir do japonês. Vou expor-lhe aquilo que penso e, quem sabe, não surge uma oportunidade de ir para lá viver. Eu tentei aprender japonês, inscrevi-me num curso e fui à primeira aula mas aquilo consistia só em repetir frases. Já falei à minha editora na hipótese de começar a traduzir com uma pessoa japonesa e fazermos uma dupla.
Como é que definem a ordem da tradução em Portugal?
O Murakami começou a ser traduzido tarde, ele já tinha livros editados. Ao traduzir o “Sputnik, Meu Amor”, a editora decidiu que era um autor para ficar.
Depois não seguiram a ordem?
Não, porque tinha acabado de sair o “Kafka à Beira-Mar”. Depois decidiu-se fazer um percurso paralelo, traduzir os mais importantes mas ir acompanhando os que iam saindo.
Que pormenores já sabe sobre o novo livro, o “Killing Commendatore”, que será dividido em dois volumes?
Sei que ele volta aos temas recorrentes como a solidão do homem neste mundo um bocadinho à deriva. Por exemplo, as novas tecnologias estão distantes dos livros dele, só muito recentemente é que usou o telemóvel. As pessoas falam ao telefone, marcam encontros. Estou curiosa para ver até que ponto vai ceder.
É publicado no Japão em fevereiro. Qual será a previsão para a publicação cá?
Tenho sempre de esperar pela tradução inglesa. A alemã sai logo, depois a italiana, a espanhola e a francesa. Só deverei recebê-lo no final do ano para começar a traduzir.
Costuma falar com os tradutores ingleses para tirar dúvidas?
Por acaso não mas tenho vontade. Tenho dúvidas, como todos, mas tenho a sorte de, ao não traduzir do japonês, ter metade dos problemas resolvidos. Traduzir Murakami é diferente para mim, sinto-me em casa, os livros dele dão-me um sentimento de bem estar incrível.
Quando acaba de traduzir sente vazio?
Sinto duas coisas, um vazio e um alívio. Nesse dia tomo sempre um banho de imersão especial, mais descontraída, sabendo que no dia seguinte volto à carga, nunca paro de traduzir.
Como funciona o dia a dia de uma tradutora?
De manhã começo com um sumo de laranja, um Nespresso, como fruta ou umas barritas e sento-me automaticamente ao computador. Agora comecei a caminhar e nesses dias sento-me às 7h45 mas já traduzi antes, já estive ao computador. Tenho de abrir pelo menos os documentos todos, leio a última frase. Nos dias em que não caminho, antes das 7 horas já estou a trabalhar. Quando estou em casa almoço cedo, por volta das 12 horas, aproveito para ver o programa do meu filho [“A Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio”, do jornalista Rui Miguel Tovar] ou séries. Antes já fiz pausas, de hora a hora é o essencial, vejo duas notícias, tomo um café. Depois consigo traduzir até às 16 horas. A seguir faço revisão ou leio.
Até agora, qual foi a tradução que mais lhe tirou o sono?
O “Crónica do Pássaro de Corda”. É um romance denso, que tem a ver com a China e a guerra, tem situações de grande dramatismo, tem um passado e um presente que se vão alternando. A personagem principal tem aquela descida ao fundo do poço. Eu sou um bocado claustrofóbica e vivi isso neste romance, sentia-me presa no fundo do poço. Não acordava à noite mas foi o mais angustiante de traduzir.
Quando perdeu o seu marido, as traduções ajudaram-na a preencher esse vazio?
É um lugar comum mas o o trabalho salva-nos, é mesmo verdade. Nunca deixei de traduzir e lembro-me de que a Teresa Matos, que é do Clube do Autor, na altura do velório me disse: “Tenho já uma revisão para si, João.” Sei que podia ser quase chocante mas aquilo foi uma forma de ela me dar a mão e de me dizer que havia sempre trabalho. O Rui era o meu primeiro revisor, era implacável, não era um fã número 10 nem 100 do Murakami. Guardo ainda as folhas com a letra dele, a verde ou vermelho, e o que mais me custou depois de ele ter morrido foi não ter quem me fizesse esse trabalho. Ele estava reformado, às vezes entrava no meu escritório e dizia: “Trabalhinho feito, quanto é que pagas?” Isso custou-me e ainda custa. A falta é outra mas sinto na pele isso. O trabalho tem permitido manter-me saudável, é duro todos os dias. Trabalho com a fotografia dele, está sempre ali comigo, já lá vão quase três anos. É a forma que eu encontro de continuar.
Consegue tirar férias?
Não há um único dia em que eu não trabalhe. Sábado é o dia mais flexível, vou ao cinema e às compras mas até no Natal traduzo. Não consigo estar mais de dois dias longe de casa, levo sempre livros e o trabalho da revisão. Até em casa dos amigos, almoço e depois do café deito-me na alcatifa, virada para baixo, é aí que revejo e escrevo. Lá está, são os filhos únicos, conseguimos estar com pessoas mas passado um bocado precisamos de um canto para nós. O Julian Barnes tem um livro fantástico que o Rui me tinha dado, o “Nada a Temer”, que ele escreve depois da morte da mulher, é brutal, de uma violência extrema. Ele diz que os amigos e a família não nos servem para nada e é verdade. Tenho o meu filho, que é exemplar, mas perdemos a pessoa que amamos e os outros são incapazes de nos dar a mão. Depois voltei a ler o livro.
Conseguiu?
Tive de voltar a lê-lo. Depois do Rui morrer aconteceu-me o que acontece a muitas pessoas que passam por isto. Ficamos com a boca seca durante meses, as palavras custam a sair e a coisa que mais me arrepiou foi o facto de não conseguimos sorrir nem rir durante meses, os próprios músculos não obedecem. As únicas pessoas que conseguiam fazer-me rir eram o meu filho e o programa do Jon Stewart, ele desarmava-me.
O que está a traduzir agora?
Estou agora a acabar Stephen King, o “Sr. Mercedes”, penso que sairá na segunda metade do ano. E depois vou voltar ao Murakami com “Homens sem Mulheres”, um livro de contos que foram sendo publicados na “Esquire” e na “New Yorker”. Volta a ser uma homenagem aos escritores preferidos dele e deve chegar às lojas em setembro ou outubro.
O Haruki Murakami nunca veio a Portugal?
Já esteve em Espanha duas vezes mas nunca em Portugal.
Também lhe envia coisas?
Enviou-me um marcador uma vez. O meu marido é que me chateava, “50€ nos correios para mandar coisas para o Japão?”
Tentou convencê-lo a gostar de Murakami?
Sim mas era um universo que não lhe dizia nada. Eu vivia com uma pessoa que não gostava de Murakami e que lia todos os Murakamis.
Com os outros escritores também tem esta ligação, trocam muitos e-mails, encomendas?
O único a quem envio coisas é o Don DeLillo, que nem sequer traduzo.
“Sou um bocado claustrofóbica e em ‘Crónica do Pássaro de Corda’ sentia-me presa no fundo do poço”
São amigos?
Somos “pen pals”. Foi no Lisbon & Estoril Film Festival que o conheci mas só no Nimas é que falei com ele. Quando fui entrevistá-lo para o “i”, as pessoas estavam lá com os livros novos para autografar. Eu estava na retaguarda com a minha caneta roxa, que uso sempre, e ele precisou de uma caneta e eu dei-lhe a minha. Assinou todos os livros com aquela. Quando viu o meu, que era muito mais antigo, parou, olhou e disse “a well read book (um livro bem lido)” e assinou apenas. Depois comprei-lhe uma caneta igual e ofereci-lha. Escreveu-me do Albatroz a agradecer e começámos a corresponder-nos.
Escrevem cartas ou e-mails?
Sempre cartas.
E o que lhe manda de Portugal?
A ele mando sempre blocos com coisas de Portugal e mando sabonetes para a mulher.
Com os outros autores não tem contacto porque não sente essa necessidade?
Não sinto.
Com que frequência manda e-mails à assistente do Murakami, a Yuki Katsura?
É sobretudo quando estou a traduzir mas no Natal mando sempre, nas datas de Hiroshima, Nagasaki, quando há tremores de terra pergunto se está tudo bem.
Qual foi a a resposta que ele já lhe deu que mais a marcou?
Quando o entrevistei para o “i”, ele disse logo que sim e eu tive de preparar a entrevista a correr, acho que nem dormi nessa noite. Mas sinto que falhei porque tentei ser um bocadinho intelectual, que é tudo o que ele não gosta nas entrevistas. Ele respondeu-me sempre, umas respostas mais longas e outras mais curtas, mas quando chegou ao fim, disse qualquer coisa como isto: “I’m going to leave my desk now, Maria João (vou deixar a minha secretária agora, Maria João)”, como quem diz, agora já chega, já estou farto disto. Ele gosta que lhe perguntem que livros está a ler, qual foi o último sítio onde almoçou. Tudo o resto, o que tem a ver a ver com a escrita, ele acha que os livros são a resposta.