Livros
Jane Hawking: “Se não fosse o divórcio, acredito que hoje não estaria viva”
A NiT entrevistou a ex-mulher de Stephen Hawking, autora de “Viagem ao Infinito”, que inspirou o filme “A Teoria de Tudo”.
A voz levemente enrouquecida e as dores de cabeça, não fizeram Jane Hawking perder a boa disposição. Com uma educação tipicamente britânica, às cinco da tarde em ponto pediu o obrigatório chá, antes de se sentar com a NiT para falar sobre as suas memórias. “Viagem ao Infinito” relata a história da ex-mulher do cientista Stephen Hawking e dos 25 anos do seu casamento, que terminou de forma atribulada quando o famoso físico decidiu “simplesmente ir-se embora”. Separados desde 1990, o divórcio consumou-se cinco anos depois.
A revisão do livro editado em 1999 voltou a reunir o casal que esteve presente na estreia mundial do filme, em Londres. Um momento que a própria confessa ter sido “muito importante” e que confirmou que “os laços familiares ainda existem”. A estreia do filme, inspirado no livro de Jane Hawking, serviu de pretexto para visitar Portugal, um país que conheceu pela primeira vez “há muitos anos”.
O seu livro, “Viagem ao Infinito”, e o filme a que deu origem, “A Teoria de Tudo”, contam uma história de amor e ela está inevitavelmente ligada ao primeiro encontro. Como foi o seu primeiro encontro romântico com Stephen Hawking?
Recordo a primeira vez que vi o Stephen como se fosse ontem. Tinha sido convidada para ir a uma festa de Ano Novo, no dia 1 de janeiro, em 1963. Entrei nervosamente na festa, muito insegura. Não sabia com quem falar e a certa altura reparei num pequeno grupo de pessoas num recanto da casa, perto de um candeeiro, e entre eles estava um jovem de cabelo desgrenhado, laço ao pescoço e casaco de veludo. Contava aos amigos como chegou a Cambridge para tirar o doutoramento.
No verão anterior, explicou, tinha completado os exames finais em Oxford e estava tudo muito confuso. Os professores ficaram perplexos com os exames feitos por um candidato que tinha lampejos de brilhantismo mas que apresentava as suas ideias num completo caos. Resolveram questionar o Stephen e ele disse-lhes que, se lhe dessem a melhor nota, mudava-se para Cambridge para completar o doutoramento.
Caso contrário, ficaria em Oxford e teriam de aturá-lo no ano seguinte. Ele próprio ria-se enquanto contava isto, achava imensa piada à história, todos nós achámos. Fiquei encantada com ele porque eu tinha sentido de humor e ele também. Mas, descobri mais tarde, éramos ambos pessoas muito tímidas. E foi esse o nosso primeiro encontro.
Casou com 21 anos, sabendo que Stephen Hawking tinha esclerose lateral amiotrófica e que, segundo os médicos, deveria ter apenas mais dois anos de vida. Como é que conseguiu lidar com tudo isso?
É muito mais fácil lidar com uma situação dessas com essa idade do que mais tarde, quando se é mais velho. Quando se é mais velho, preocupamo-nos com tudo. Quando somos novos, não há preocupações. Eu pensei que tinha uma vida inteira pela frente e que podia dar-me e dedicar o meu tempo ao Stephen durante dois ou três anos.
E, quando tomou a decisão, alguma vez pensou que o casamento e a vossa relação duraria tanto tempo?
Para ser completamente honesta, não. Não pensei que durasse tanto tempo. No entanto, tinha a forte convicção de que entre os dois, seríamos capazes de ultrapassar a doença. E era esse o meu objetivo de vida, o de colocar a doença para trás das nossas vidas. O outro era ajudar o Stephen a concretizar o seu mais que óbvio potencial científico.
O que aprendeu e retirou de 25 anos de casamento com uma das mentes mais brilhantes do nosso tempo?
Aprendi a ser muito crítica, a não aceitar as coisas apenas pela primeira impressão. Era, possivelmente, muito intolerante relativamente a coisas que achava que eram estúpidas. Com o Stephen aprendi a ser muito mais determinada.
Em 1989 houve um período atribulado na vossa vida. Uma pneumonia quase matou Hawking e a Jane teve a decisão da sua vida nas mãos. O que pensou nesse momento?
Quando os médicos me perguntaram se deveriam desligar a máquina de suporte de vida, não tive qualquer tipo de hesitação em dizer que não o podiam fazer. Eu sabia que o Stephen ainda tinha muito para dar. No meu caso, o meu papel era o de tornar a sua vida possível, dar-lhe vida, não terminá-la.
Em algum momento, Stephen Hawking lhe disse que devia ter decidido de outra forma?
Não. Nunca o disse. Mas foi tudo uma enorme batalha para ele. Depois da traqueotomia, ele perdeu completamente a voz. Por outro lado, mesmo antes da traqueotomia, a sua voz já estava reduzida a um sussurro que era muito difícil de perceber. Havia cerca de dez pessoas no mundo que conseguiam perceber o que ele dizia. Eu era obviamente uma delas. As crianças também. Isso era difícil para nós porque tínhamos de fazer um esforço tremendo para o ouvir e pedíamos várias vezes para ele repetir. E obviamente que era um esforço tremendo para ele.
Depois, passámos por esse período terrível da doença em Genebra e pela traqueotomia. Foi extraordinário porque o Stephen esteve internado durante vários meses e, durante esse tempo, onde parecia que ele nunca mais iria conseguir comunicar, chegou um computador dos EUA que iria permitir que ele voltasse a falar connosco através de um ecrã e de um comando. Foi assim que surgiu a voz que é hoje reconhecida como a voz de Stephen Hawking. Pela primeira vez em muitos anos, ele conseguiu finalmente expressar e dizer os seus pensamentos, explicar as suas teorias, falar sobre as suas descobertas, dar voz às suas necessidades e isso transformou a sua vida há já 30 anos.
Qual foi o momento em que chegaram à conclusão que o casamento tinha efetivamente terminado?
Não foi uma questão de pensarmos que tinha tudo chegado ao fim. Foi o Stephen que tomou a decisão de, simplesmente, se ir embora, sem nunca nos dizer que era isso que tinha planeado. Não era propriamente aquilo de que eu estava à espera. Mas, durante esses 25 anos, poucas coisas foram exatamente aquilo que eu esperava delas. Talvez isso tivesse sido apenas mais do mesmo.
Alguma vez sentiu que era apenas uma das partes da vida de Hawking e que competia com algo mais forte do que a vossa relação, como a física ou o seu próprio intelecto?
Senti que competia com dois parceiros no nosso casamento: a deusa da física e a esclerose lateral amiotrófica (ELA). Ele ficava tão absorvido na física que não reparava em nada do que acontecia à sua volta. E a ELA é uma doença muito lenta e muito cruel, mas implacável e impiedosa.
Se, por algum motivo, Stephen Hawking não se tivesse tornado numa figura mundialmente reconhecida, acredita que a vossa relação teria sido a mesma?
A ELA ainda estaria lá e também a obsessão pela ciência. Não vejo como é que poderia ter aguentado todo este tempo a cuidar dele. Não consigo imaginar como seria a minha vida. Por um lado, houve a fama e a fortuna, que foram parcialmente responsáveis pelo fim do nosso casamento. Por outro lado, sem a separação e o fim do casamento, acho que hoje não estaria viva. Esses 25 anos deixaram-me de rastos devido à exaustão e cansaço. E provocaram a perda total da minha personalidade. Sentia que já não era importante. Diria até que perdi a minha identidade.
Assistiu a “A Teoria de Tudo” e “Hawking” — o filme de 2004 da BBC sobre Stephen Hawking — onde a sua personagem é interpretada por Felicity Jones e Lisa Dillon, respetivamente. De qual gostou mais?
A Lisa Dillon esteve muito bem, mas já vi esse filme há muito tempo e não me recordo muito bem. A Felicity é excelente, é uma atriz com método e jantámos muitas vezes juntas. Estudou-me, observou-me, falámos muito tempo e adotou os meus maneirismos e padrões de fala. Quando a vejo no ecrã penso: “esta sou eu”.
E quanto aos atores, qual é que gostou mais? Benedict Cumberbatch ou Eddie Redmayne?
Do Eddie Redmayne, porque se embrenhou tão bem na personagem que parecia estar mesmo a viver na pele do Stephen. E ele mesmo disse que só agora, passado este tempo, é que a sua personalidade está a ressurgir.
Acha que o filme “A Teoria de Tudo” captou a verdadeira essência do livro e da história da sua vida?
O livro é bastante mais longo do que o filme e engloba 25 anos que, no filme, foram condensados em apenas duas horas. Os produtores e realizadores tomaram muita liberdade artística e há bastantes imprecisões, mas no essencial e ao nível das emoções, é tudo verdade. O filme foi concebido para ser uma celebração e portanto não inclui toda a informação do livro. Não contém todo o sofrimento, apenas uma fração das dificuldades que enfrentei durante todos esses anos. Mas fiquei muito satisfeita com o resultado porque é muito belo e, acima de tudo, verdadeiro.
O filme termina num tom de calma e serenidade, como se todos tivessem terminado num sítio bom. Acha que isso reflete a realidade de ambos?
O final não reflete exatamente aquilo que se passava nesse ano de 1989, mas reflete com alguma precisão a realidade atual. Conseguimos estar todos juntos na estreia do filme, em Londres, com toda a família unida e isso para mim é muito importante. Os laços familiares ainda existem.
Entrevista originalmente publicada a 23 de janeiro de 2015.