Não me lembro exatamente da primeira vez que ouvi Elton John, mas sei que a minha melhor amiga de infância, que ainda hoje o é, cantava “Sorry Seems to Be the Hardest Word” como um anjo. Disso e de ter obrigado os meus pais a comprarem o single em vinil de “Nikita” como presente de Natal. Com o passar dos anos fui conhecendo melhor a sua obra: “Tiny Dancer” tornou-se rapidamente a minha música favorita de Sir Elton e, quando assisti a um concerto de Elton John em Lisboa, há uns anos, passei o tempo todo pasmada perante a voz e energia de um homem com quase 70 anos. Lembro-me de o ver a apresentar o baterista Nigel Olsson como alguém com quem tocava há 50 anos e de pensar: “50 anos? Eles tocam juntos há muito mais tempo do que eu existo — e ainda me sinto cansada, às vezes.”
Mal sabia então o que Elton John, nascido Reginald Kenneth Dwight a 25 de março 1947, tinha passado para ali chegar. Sabia os básicos: o facto de ser um músico exigente e tido por alguns pares como um pouco difícil, o de ser um multimilionário, tendo vendido centenas de milhares de discos, de ter sido feito Sir Elton pela própria Rainha Isabel II, de apoiar caridades e a luta contra a SIDA, de ser um génio criativo responsável por largas dezenas de canções que marcaram a música, de até John Lennon ter elogiado “Your Song”. E, claro, de ser o Elton John dos óculos estranhos e roupas extravagantes.
Alguns anos depois, a minha amiga, que agora é cantora, foi comigo ver “Rocketman“, nas salas de cinema desde quinta-feira, 30 de maio. E foi um pouco um choque, creio que para ambas. Não pelas, já entretanto tão faladas, cenas de sexo e drogas, recriadas praticamente sem tabus — e que terá sido o próprio Elton Jonh, produtor executivo do filme e que acompanhou toda a sua criação, a fazer questão de ver incluídas, contra conselhos até da própria distribuidora. Elton nunca foi de grandes resguardos e não iria começar agora, justo no filme que conta a história da sua vida. Tudo o que é preciso mostrar para contar a história está no filme, sem excessos mas de forma quase inédita numa produção tão para as massas.
O choque veio pela positiva, pela profundidade e magnitude de um génio criativo, revelado tão cedo e sobretudo tão vincadamente, contra todas as expetativas. Contra as do mundo, que ao início parecia não querer nada com ele, e contra as dos próprios pais que, a crer no filme, praticamente só terão contribuído para o seu sucesso no plano da decepção e tristeza, transformadas em criatividade.
“Rocketman” não é uma biopic, tem sido repetido por realizador e atores: é uma biografia fantasiada e musicada sobre a vida de Elton John, com maior incidência nos anos em que se tornou famoso. E é também um dos projetos mais antecipados deste ano por dois grandes motivos: por ser uma obra que terá demorado mais de 15 anos a concretizar e por ser lançado pouco tempo depois de uma outra biografia, de um outro cantor, ter estado na ribalta — a história de Freddie Mercury em “Bohemian Rapsody“, visto por milhões, vencedor de prémios, aclamado pelo público mas não tanto pela crítica —, sendo por isso inevitável a expetativa e também as comparações.
Mas as diferenças são muitas, já o referimos num artigo da NiT: logo para começar, “Rocketman” é um musical, mesmo musical, do género estar-se a viver uma cena do filme e começar tudo a cantar e dançar, esse tipo de musical, para que não restem dúvidas. Mas é também muito mais cru do que “Rapsody”. E excêntrico, e emotivo.
Taron Egerton é Elton John, que conhecemos na primeira e arrebatadora cena do filme — e que depois também será uma das suas finais, em jeito de circulo fechado —, quando dá entrada numa clínica de reabilitação. A imagem é profundamente marcante e um resumo, logo nos primeiros cinco minutos, de um pouco de tudo o que Elton é, e de tudo o que podemos esperar ao ver a sua história. Visivelmente saído de um concerto (que, descobriríamos mais tarde, nunca chegou a dar), está vestido com um macacão brilhante, laranja e vermelho com cornos de diabo, óculos de sol em forma de coração e um par de asas: a excentricidade, o ego e a dualidade em pessoa. Entra numa sala do género alcoólicos anónimos com uma piada mas logo quebra e confessa aos desconhecidos: é alcoólico. E viciado em drogas, todas as que há. E em comprimidos. E em sexo, e compras. E bulímico.
O filme começa no ponto mais baixo da sua vida, e a partilha nos grupos de apoio da clínica vai sendo o fio condutor de toda a história. Enquanto conhecemos o seu passado, tudo o que o levou ali, vamos pontualmente voltando àquela sala de partilhas e segredos e vendo a raiva transformar-se em aceitação, a dor em serenidade. A mesma que o levaria a ser quem é hoje: sóbrio há 28 anos, casado e com dois filhos, a produzir finalmente o seu filme num claro ponto de viragem da sua vida, em que se retirou dos palcos para se dedicar à família.
Com os flashbacks, seguimos então Reginald, ainda não Elton, desde tenra idade, quando ainda era um tímido e roliço rapaz inglês. A sua infância difícil é um dos pontos essenciais do filme, ficando bem claro que, se a inclusão de tantas (e por vezes tão tristes ) memórias de infância tiveram apoio de Elton, a sua obra serviu também para carpir mágoas antigas.
Conhecemos um miúdo inseguro, que tudo o que quer é o amor do pai (que não tem), ou um seu abraço (nada), ou que pede uma mãe mais atenta, que nem sempre o é — é uma mulher como tantas outras, a tentar sobreviver. E que encontra apoio sobretudo na avó, uma das pessoas que mais incentiva o seu claro e precoce interesse pela música e pelo piano, para o qual parece ter uma vocação especial. Desde pequeno que toca músicas de ouvido, sem hesitar, e chega a ser recomendado por um professor para uma bolsa numa academia de música — onde também é a avó que o leva, todas as semanas.
Fica bem claro desde cedo o génio de Elton Jonh, a sua facilidade em tocar e criar música, que seria depois toda a base da sua vida, e da história que conta o seu sucesso inicial. A dado ponto, já farto de tocar em bares e tentando lutar pelo seu lugar na música, visita a DJM Records, de Dick James, onde conhece Ray Williams, um funcionário que repara, pelos pequenos toques no piano de um tema que Elton cria no momento, que há ali qualquer coisa. Sem saber bem o que fazer perante um potencial ainda tão em bruto, dá a Reggie uma pasta com letras retirada da pilha de outras pessoas que teriam ido ao estúdio pedir emprego, pede-lhe para as musicar “e logo se vê”.
Dá-se assim o ponto de viragem no filme e em toda a história: o encontro com Bernie Taupin (Jamie Bell), o eterno letrista das canções de Elton. De tudo o que se tem escrito sobre “Rocketman”, pouco se fala sobre Taupin, o que é um pouco estranho. Porque tanto no filme, como na vida de Reginald, ele é a personagem principal.
É com as letras de Taupin que Elton começa a escrever músicas, e é da sua parceria que nascem dezenas de temas. Taupin escreve as letras, Elton olha para elas e sai música, por vezes em minutos: como “Your Song”, o tema que os catapultaria para o sucesso e que foi escrito, reza a história e mostra o filme, em poucos minutos ao pequeno-almoço, em casa dos pais de Reggie. Não diz no cinema, mas Taupin teria 17 anos.
É também esta amizade que forja o seu primeiro apaziguamento perante um mundo que até aí só o parecia revoltar: Bernie não é homossexual mas aceita sem tabus a recém descoberta homossexualidade do amigo, acompanha-o em todos os momentos, bons e maus. Diz-se a dado ponto no filme que em mais de 30 anos os dois nunca discutem mas a própria obra mostra o contrário: discutem, sim, discordam e afastam-se mas voltam sempre à forte e incrível ligação que têm, sem rancores. O filme é muito uma ode à sua amizade — aliás, expresso pelos dois, ao seu amor.
Ainda hoje Elton e Bernie colaboram, e ainda hoje são amigos, 50 anos depois. Após esse seu primeiro encontro, a história entra em velocidade de cruzeiro e aí é uma montanha russa, tão extravagante, caótica, exagerada, emocional e tão cheia de extremos como o próprio Elton.
Em nome do lado de musical da produção, a grande maioria da cronologia das músicas não é respeitada, nem são revelados grandes momentos sobre as composições, à excepção de “Your Song”: algo que não podemos deixar de lamentar, não nos importávamos de saber mais sobre a composição de “Tiny Dancer” ou do próprio tema-título, “Rocketman”. São ignorados dezenas de temas, momentos e álbuns, e as canções que aparecem são sobretudo utilizadas como um apontamento musical, de personagens a cantar e dançar, que se adequam ao momento vivido em cena — e não minimamente à altura ou ao contexto em que foi feita a canção.
A história é assim interrompida por momentos de cantoria e dança ou por levitações de personagens, apontamentos de realidade acelerada e alucinada e com um toque quase de cinema fantástico, um pouco também para mostrar toda a loucura que se seguiu ao encontro com Taupin e ao lançamento dos dois primeiros discos.
E o que se seguiu foi o sucesso imediato, verdadeiramente astronómico, desde um mítico primeiro concerto no Troubador de Los Angeles, onde estariam Bob Dylan e os Beach Boys em público e que Elton, apesar dos nervos iniciais, simplesmente arrasou. A partir daí vêm os excessos, as drogas, os momentos de perda de consciência, o sexo, a bebida constante e a depressão. Reginald transformara-se em Elton para acabar com a criança tímida e insegura e nascer uma estrela; mas quando se torna essa estrela fica perdido entre as drogas, as roupas, os abusos e uma relação perfeitamente disfuncional com o seu primeiro namorado, e depois agente, John Reid, que o terá levado positivamente à loucura e ao abismo.
Parece em “Rocketman” que Reggie passa a infância com plena noção de quem é mas sempre a sonhar mudar; e a grande maioria da vida adulta e de sucesso, já como Elton, sem apreciar particularmente nada do que se tornou mas sem saber voltar a Reggie. Os pontos altos foram muito altos, e os baixos muito baixos, resumiu recentemente o próprio músico, em entrevistas sobre o filme. O meio termo foi o mais difícil de encontrar.
“Rocketman” foi realizado por Dexter Fletcher, o responsável por terminar “Bohemian Rhapsody” depois de o realizador Bryan Singer ter sido despedido. O elenco inclui Bryce Dallas Howard, como a sua mãe, Jamie Bell, como Bernie Taupin, Stephen Graham, Tate Donovan e Charlie Rowe, entre outros.
Se o filme tiver o sucesso que já se auspicia, pelo menos em termos de crítica — foi aplaudido de pé em Cannes, na estreia —, deve-se muito à sua ousadia e não convencionalidade, mas o mérito será também de Taron Egerton, Elton na produção. O ator de 30 anos, que se tornou conhecido com “Kingsman: Serviços Secretos”, canta as músicas com uma voz perfeita, expressa a angústia, oscila entre emoções com enorme velocidade, sofre e vive com a mesma intensidade de Elton, numa interpretação incrível feita de grandes planos que só parece por vezes roçar o excesso — mas afinal de contas todo o filme é assim, de excessos, tal como a vida de Sir Elton John.