Sempre que estreia um trailer ou é anunciado um filme muito esperado, os fãs mantêm-se atentos às novidades, como é natural, seja por gostarem do realizador ou considerarem a história promissora — normalmente, só mais tarde é que essas produções recebem um título oficial em português, e nalgumas ocasiões não era bem aquilo de que o público estava à espera.
Por exemplo, o filme “Ford v Ferrari”, que venceu dois Óscares este ano, em Portugal foi traduzido para “Le Mans ’66: O Duelo”. “Little Miss Sunshine”, de 2006, tornou-se “Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos”. Se recuarmos no tempo, até 1985, “Teen Wolf” foi “Lobijovem” — numa tradução nacional bem criativa. No Brasil também há casos famosos, como “O Poderoso Chefão”, a tradução do clássico “O Padrinho”.
Outra opção que é comum nas traduções em Portugal são os acrescentos aos títulos originais. Por exemplo, quando “Toy Story” estreou em 1995, foi como “Toy Story: Os Rivais”. Ou “Million Dollar Baby”, que ficou “Million Dollar Baby — Sonhos Vencidos”.
Enfim, se sempre ficou intrigado com as escolhas que são feitas, a NiT tentou perceber como é que tudo funciona. Para isso, falámos com o diretor de marketing da NOS Lusomundo Audiovisuais, Saúl Rafael, sendo que a NOS é a maior distribuidora nacional de cinema.
Cada distribuidora trata de definir os títulos em Portugal para os filmes que vai transmitir por cá. Segundo as regras da Inspeção Geral das Atividades Culturais (IGAC), entidade pública que regulamenta esta questão, a ideia é que todos os filmes tenham uma tradução portuguesa — mas claro que também existem exceções.
Além de serem aprovados pela IGAC, as traduções dos títulos dos filmes também têm de passar pelos respetivos estúdios. Neste caso da NOS, são distribuídas as produções dos estúdios da Disney, Warner, Paramount e do cinema independente no geral.
Existe um responsável por cada uma destas quatro unidades — Saúl Rafael tem a “pasta” da Warner. Neste caso da NOS, cada um dos responsáveis faz uma proposta interna sobre os respetivos filmes, que é aprovada “normalmente sem grande discussão”, e depois tenta-se verificar se é possível avançar junto dos estúdios, que distribuem globalmente a produção. Só depois é que segue para a IGAC.
Saúl Rafael explica que este processo é rápido e que para cada filme costuma variar entre dois a quatro dias, sendo que, por vezes, é necessário argumentar e defender as várias propostas, o que demora mais tempo. “A ideia é sempre ser o mais fiel possível ao original, ser uma tradução literal, para respeitar o conceito que o realizador ou a equipa de cineastas quiseram colocar no título do filme.”
No entanto, nem sempre é uma opção viável. “Muitas vezes a tradução literal não faz sentido, ou não tem qualquer tipo de appeal para o público.” A IGAC tem algumas regras: só é possível registar um título uma vez, logo não é permitido haver repetições.
Por exemplo, “The Accountant”, produção de 2016 realizada por Gavin O’Connor que tem Ben Affleck como protagonista, era para se chamar simplesmente “Acerto de Contas” em Portugal.
“Tinha o lado do contabilista, porque é isso que ele faz, tem de ter as contas certas. Mas também tinha o lado do acerto de contas da porrada, porque no fundo o filme é isso, ele vingar-se de quem lhe fez mal. Era um título que resultava bem pelos dois lados. Mas já existia um ‘Acerto de Contas’ registado, por isso teve que ficar também com o original, e às vezes pode ficar um pouco estranho.” A tradução acabou por ser, lá está, “The Accountant — Acerto de Contas”. No entanto, Saúl Rafael defende que por vezes os acrescentos ao título original fazem sentido para tudo ficar mais explícito.
A única forma de um título se manter em inglês, como na versão original (se falarmos de produções americanas, britânicas ou australianas, etc.), é se for um nome de uma pessoa, de uma cidade ou de uma obra artística, por exemplo. Foi o que aconteceu no ano passado com “Joker” e, antes, com “Bohemian Rhapsody”, entre outros casos. Saúl Rafael explica ainda que quando são adaptações literárias ou remakes (ou sequelas) de sagas já conhecidas, tenta-se manter os nomes.
Por vezes, há formas de contornar a obrigatoriedade das traduções, especialmente quando existe essa intenção por parte do estúdio. Foi isso que tem acontecido com os filmes realizados por Christopher Nolan em Portugal, que são distribuídos pela Warner e pela NOS.
“Em Portugal o ‘Interstellar’ esteve para ser ‘Interestelar’, mas a Warner escreveu uma nota a dizer que era o desejo da equipa de Nolan que se mantivesse como o original, e tornou-se possível. Aconteceu o mesmo com o ‘Dunkirk’, que era para ser ‘Dunquerque’.”
O próximo projeto do realizador, “Tenet” (que estreia em julho), também vai manter o título, diz o diretor de marketing da NOS Lusomundo Audiovisuais. “Porque se lê de trás para a frente da mesma forma, portanto só nos países em que conseguissem ter uma palavra do género é que se justificava a tradução.”
Outro caso recente, que ajuda a explicar bem as várias nuances nas escolhas dos títulos, foi “Richard Jewell”, filme de Clint Eastwood que venceu um Óscar, sobre um segurança que foi erradamente acusado de ter cometido um atentado nos Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996. Em Portugal acabou por ficar “O Caso de Richard Jewell”.
“Tentámos explicar-lhes [ao estúdio] que em Portugal ninguém conhecia o Richard Jewell, pelo que não seria um título bom para atrair pessoas. Estávamos mais a apontar para um ‘Inocente ou Culpado?’, mas eles fizeram questão de que tivesse o nome do Richard Jewell no título, por isso ficou daquela forma. Obviamente também tentamos explicar o que funciona melhor comercialmente, para cada filme atingir os seus objetivos.”
Saúl Rafael diz que normalmente esta decisão é dos estúdios, mas nalgumas ocasiões os realizadores ou a equipa de produtores também podem ter uma palavra a dizer. No entanto, diz, já não existe nada como acontecia antigamente com os filmes de Stanley Kubrick. “Ele tinha uma equipa só para ver as traduções dos títulos e legendas em todas as línguas, eles próprios tinham de aprovar todos os artworks.”
O mais recente caso em que teve de decidir o título foi o remake de “Dune”, clássico de David Lynch, cuja nova versão estreia em dezembro. Segundo as regras da IGAC, a decisão natural seria traduzir para “Duna”, mas Saúl Rafael tentou que se mantivesse como “Dune”. “É um filme de culto, bastante apreciado pela comunidade cinéfila e sempre foi conhecido como ‘Dune’. Mas são casos tramados, parece ridículo ficar ‘Duna’, mas teve de ser. Na comunicação dos posters vamos conseguir pôr em grande ‘Dune’, mas também vai ter de lá estar ‘Duna’ entre parênteses.”
Outro deles foi o terceiro capítulo da saga de terror “The Conjuring”. Originalmente o projeto chama-se “The Conjuring 3: The Devil Made Me Do It”, mas em Portugal Saúl Rafael acabou por conseguir que ficasse “The Conjuring 3: A Obra do Diabo”. “‘A Obra do Diabo’ é uma expressão idiomática, era muito mais forte do que ‘O Diabo Fez-me Fazê-lo’.”
Saúl Rafael conta ainda à NiT que o próximo filme na sua lista é “The Many Saints of Newark”, a prequela de “Os Sopranos”, mas que ainda não recebeu as indicações da Warner para perceber como poderá traduzi-lo e se vai ter regras específicas, como acontece em vários casos. “Mas vamos ter de puxar pelo nosso pensamento.”