“Todos os dias há alguém que é alérgico a isto, não gosta daquilo. Eu até gosto dessa adrenalina. Temos sempre uma solução mais ou menos pensada mas criamos tudo no momento”, explica o chef à NiT.
A cozinha tem vista panorâmica mas a equipa não tem tempo para apreciá-la.
A água é Luso, vem numa garrafa de vidro mas é transferida para um jarro, os guardanapos de pano chegam numa bandeja e os talheres — de prata e vindos da Alemanha — são colocados na mesa com uma luva. Os aperitivos, ou “miminhos do chef”, como lhe chama João, são quatro e podem variar consoante os produtos frescos da época. Devem ser apreciados pela mesma ordem em que são descritos: uma colher com abacate, tomate confitado, santola e sapateira; crocante de topinambur, folha de ostra e caviar ossetra; crocante de massa de pizza com burrata, manjericão e vinagre balsâmico envelhecido; brandade de bacalhau com maionese de manzanilla e yuzu.
Não posso prometer-vos uma descrição à crítico gastronómico, não conheço termos técnicos e houve muita coisa que nunca tinha provado na vida. O que posso dizer-vos é que acontecem pequenas festas na nossa boca, há pratos que provocam uma felicidade tão grande que quase se transforma em lágrimas e até aos ingredientes de que não gostamos nos rendemos (continuo a não gostar de queijo algum mas ao menos durante cinco segundos estive disposta a experimentar e não morri).
À mesa chega uma taça branca com aquilo que parece ser uma espécie de comprimido no centro. A palavra “napkin” (guardanapo) está lá inscrita e uns segundos depois faz-se magia. João despeja uma água aromatizada com maçã e limão (que remete para os sabores do primeiro prato) e à nossa frente nasce um pequeno guardanapo enrolado e morno.
Segue-se a pré-entrada, um mil-folhas caramelizado de foie gras, maçã verde e enguia fumada. Este é um dos pratos emblemáticos de Martín Berasategui e costuma fazer parte dos restaurantes que têm o nome dele. São dois quadrados pequenos com várias camadas. A do topo, o caramelo, mantém-se na boca mesmo depois de desaparecerem as outras todas.
Pode beber o que quiser para acompanhar o menu ou fazer um pairing entre vinhos e pratos (os vinhos vão mudando à medida que se avança na degustação) que começam nos 60€. Há três tipos de pão (com pancetta, massa mãe e crocante). As manteigas vêm acompanhadas por flor de sal e são cinco: normal, de cogumelos, tomate, beterraba e espinafres. Têm o formato de tubos pequenos e parecem um jogo colorido.
No Fifty Seconds a apresentação conta tanto como os sabores. Os pratos são tão bonitos que dou por mim a acariciá-los. Parecem conchas ou rochas, têm formatos, texturas, materiais diferentes e há 80 tipos no restaurante (embora ainda nem todos estejam a ser usados). Foi Filipe Carvalho que os escolheu um a um de uma amostra de 250 pratos. São de Barcelona, Madrid, Limoges e um do Japão. Portugal só está representado pela Vista Alegre porque, lamenta o chef, “começam agora a aparecer artesãos mas ainda não há muita escolha”.
Martín Berasategui tem oito estrelas Michelin em Espanha.
O grupo SANA investiu 3,5 milhões de euros neste projeto — que inclui um miradouro no piso superior que deverá abrir ao público em 2019 e funcionar também como varanda do restaurante. O Fifty Seconds tem lugar para 30 pessoas (35 no máximo), está aberto desde 6 de novembro mas as últimas semanas têm sido para aperfeiçoar todos os detalhes. A equipa de 22 pessoas (10 na sala e 12 na cozinha, todos portugueses) tem servido funcionários da empresa para treinar e aprender tudo o que é preciso para fazer deste restaurante um sério candidato a uma estrela Michelin.
“A marca Martín Berasategui não nos impõe nada mas mostra vontade de alcançar esse objetivo: chegar a uma estrela em dois anos e a duas estrelas em quatro.”
De volta à mesa, espera-nos a entrada: ostra com sumo de azeitonas verdes, emulsão de wasabi e crocante de algas. Embora não seja fã do sabor de wasabi, as texturas encaixam-se na perfeição e vão revelando pequenas surpresas a cada colherada: ora é fresco, ora é crocante, ora se derrete debaixo da língua. Segue-se uma gema de ovo em carbonara de ervas, lâminas de beterraba, carpaccio de papada de porco e trufa branca. O que dizer? Os olhos comem primeiro a apresentação do prato, o paladar confirma depois que o casamento entre todos estes ingredientes foi feito para durar para sempre.
O que comemos a seguir demorou à volta de 40 minutos a ser preparado (sim, um único prato). É a salada de verduras, ervas e pétalas, brotes com puré de alface e lavagante, gelatina de água de tomate — mais um dos clássicos de Martín Berasategui. Eu resolvi chamar-lhe mini jardim e pode até ser mágico. Cada área tem sabores diferentes e até no ar se sente o aroma fresco.
“Há quem não goste, quem não entenda este prato”, admite Filipe Carvalho. Eu tive pena de desfazer aquela obra de arte e ainda mais depois de saber que há uma pessoa na cozinha que só faz este prato durante o serviço inteiro. Nada é colocado ao acaso, tudo tem o seu lugar milimetricamente estudado.
Seguimos para o salmonete com escamas crocantes, falso risotto de funcho, espuma de açafrão e ravioli de tinta de choco. Todos os peixes que provamos são frescos, leves, com o tempero exato mas aqui a perfeição é alcançada pelas escamas crocantes. Sim, leu bem. É uma maravilha ou então um segredo que pouca gente conhece.
Ainda a afinar os últimos detalhes, a equipa chega todos os dias às 7 horas.
Por esta altura sinto que o meu organismo já não aguenta mais comida e ainda só vamos a meio do menu. Demasiado tarde para desistir, avançamos para a carne. “Trufa” de fígados com cogumelos fermentados, couve lombarda, cristas de galo e emulsão de trompetes da morte (calma, são cogumelos). Neste momento o repórter de imagem da NiT resolve perguntar o que são as cristas de galo, uma questão que já está a atormentá-lo há algum tempo. “São mesmo cristas de galo”, responde o João. O meu colega ri-se (já que o prato dele é peixe) e eu tenho vontade de chorar porque o meu cérebro já decidiu que não vou gostar deste prato. Por mais abertura que uma pessoa tenha, sabemos que há coisas que nunca precisamos de provar na vida.
Mal consigo terminar o que tenho à frente (não por culpa do que lá está mas da imagem que tenho na cabeça) e prefiro seguir rapidamente para a pá de borrego de leite com jus de borrego, soro de parmesão, cogumelos silvestres e trufa. Tal como na salada, há muitas coisas a acontecer neste prato e a carne é tão tenra que quase não precisa de ser mastigada. Ao meu lado, a carne foi substituída por pescada com puré de cebola trufada e esféricos de guindilha. É impossível escolher um vencedor.
A pré-sobremesa apresenta os doces com a pompa que eles merecem. Txakoli com laranja, gelado de casca de limão, granizado de laranja sanguínea e emulsão de maçã em azoto líquido. É uma espécie de limpa-palato, não há outra forma de o descrever, mas em bom. É fresco, crocante, gelatinoso. Até aqui tudo foi incrível mas eu e o meu colega concordamos: o fogo de artifício, a felicidade no fundo do prato, a Meryl Streep das sobremesas, estava reservada para o fim. Infusão de arroz, leite e cardamomo, pistáchio, yuzu e kalamansi. Ainda tenho vontade de chorar de alegria só pela recordação. Aqui o pistáchio é rei e tem mil caras: tanto é um bolo fofo como se parte em bocados minúsculos ou uma esponja que, se eu pudesse, guardava num cantinho da boca para sempre.
Aos 32 anos, Filipe Carvalho é o chef executivo do espaço.
Quando, mais tarde, falamos dos pratos com Filipe Carvalho, ele pergunta-nos em cada descrição se gostámos. O feedback dos clientes é importante e é para eles que trabalha ao máximo todos os dias.
O chef executivo do Fifty Seconds passou pelo Feitoria, pelo Vila Joya, esteve em Nova Iorque e no Lasarte, em Barcelona, o espaço de Berasategui com três estrelas. Para o espanhol, que ele vê como mentor, não há nada mais importante do que aquilo que o cliente quer ou gosta. O restaurante do Parque das Nações só está a servir refeições a sério (e não as de teste) desde quinta-feira, 15 de novembro, à noite mas já foi preciso fazer “sete ou oito menus diferentes”.
“O Martín disse-me várias vezes: ‘Podes ter muitas estrelas Michelin mas, se tens o restaurante vazio, para que servem?’”
Em 2016, quando recebeu a terceira estrela, o Lasarte foi visitado 15 vezes pelos inspetores do guia mais conceituado da restauração, que nunca se identificam.
“Alguns já eram reconhecidos assim que entravam mas isso não mudava a pressão que tínhamos na cozinha.”
Filipe Carvalho foi convidado para se juntar a este novo projeto há um ano e meio mas há quatro que trabalha com Martín Berasategui. A troca de ideias e conselhos entre os chefs de todos os restaurantes com a assinatura do conceituado espanhol é constante e incentivada ao máximo. Até têm um grupo de whatsapp para ser tudo mais imediato.
A curto prazo há três objetivos bem definidos no Fifty Seconds: “Muita consistência, uma grande equipa e um restaurante cheio.”
Pelo menos o terceiro já está a ser cumprido. O restaurante, que fecha ao domingo e segunda-feira, está cheio aos jantares (19h30 — 23 horas) até dezembro e ao almoço (12h30 — 15 horas) há apenas algumas vagas.
Bebendo ou não café, ninguém sai da mesa sem provar os petits-fours transportados num pedestal. Está lá a madalena clássica, a pâte à choux de café e baunilha e, no topo, um biscoito com creme e praliné de avelã. Se ainda não estava convencido, garantimos-lhe que por estes mini bolos vale a pena fechar os olhos no momento de pagar a conta ou evitar os próximos quatro jantares banais fora de casa e investir nesta experiência.
Por estes dias a equipa do Fifty Seconds continua a chegar às sete da manhã e a sair já depois da uma. A eles pedimos desde já desculpa se nos ouvirem bater à porta a horas impróprias. É que não estamos a saber viver sem aquele inacreditável doce de pistáchio.
Carregue na imagem para conhecer os pratos que pode encontrar no Menu Degustação do Fifty Seconds.