Quando o Manuel Luís Goucha começa é quando os programas passam a ser diretos?
Sim, foi quando o Manuel Luís começou na RTP. Na altura éramos vários chefs. Eu era à quarta. A RTP acaba com a rubrica e venho trabalhar em Lisboa em várias revistas de culinária.
Com que publicações?
“Teleculinária”, “Saúde à Mesa”, também noutras edições e em vários livros. As pessoas pensam que nunca editei livros, mas tenho 14 livros editados. Livros de autor tenho apenas dois, mas todos os outros foram feitos para marcas. E depois houve clientes que começaram também a pedir televisão. Comecei depois a também a fazer programas para a SIC.
Também para o programa da manhã?
Sim, sempre para os programas da manhã. Sei que já era com a Júlia Pinheiro, não me recordo do nome. E voltaram a ser gravados. Depois comecei na TVI com alguns clientes, onde estou até hoje.
Tem parcerias com várias marcas, mas o Lidl é a mais sonante e que as pessoas mais conhecem também.
Foi uma parceria que fiz há 10 anos. Estive com eles em televisão também e é uma parceria que se mantém, é um parceiro com que gosto muito de trabalhar. São bastante exigentes, mas tenho feito um trabalho fantástico. Costumo dizer que conheci o Lidl a preto e branco.
Houve uma altura em que as pessoas o chamavam de Senhor Lidl?
Ainda hoje. As pessoas quando vou para qualquer lado, sobretudo nos centros mais rurais, tratam-me por Senhor do Lidl. As pessoas pensam que ainda hoje estou em televisão com os produtos do Lidl. Dizem que vêem o programa e que vão logo à loja comprar os ingredientes para fazer a receita.
Agora na TVI já não tem nada a ver com o Lidl?
Agora não, mas durante anos eles estiveram em televisão. Agora a rubica é da minha autoria. Quando há patrocinadores, faço o patrocínio.
Vive em Gaia e vem todas as semanas a Lisboa ?
Sim, venho todas as semanas, normalmente às quartas-feiras. Mas há semanas em que estou aqui toda a semana. Tenho outros trabalhos, gravações e fotografias. Tenho sempre muito trabalho, mas normalmente são três a quatro dias em Lisboa.
E para a TVI, como é que vem todas as semanas?
Adoro conduzir, mas é com calma, ir passear e sem problemas. Quando é para trabalhar e com responsabilidade, prefiro vir no Alfa.
Todas as quartas-feiras o chef vai à TVI.
É o chef que escolhe sempre aquilo que faz?
A escolha é sempre minha, mesmo quando há patrocínio também é minha. Claro que o cliente às vezes dá alguma dica, quer trabalhar o seu produto. Eu posso opinar e digo se vai ou não funcionar em televisão. Decido sempre o que vou fazer.
E depois a comida fica lá, alguém a prova?
A comida é sempre aproveitada, não se estraga nada. O Manuel prova de vez em quando também. Sou um privilegiado em trabalhar com dois monstros da televisão. Tenho alguma preocupação em perguntar se está o Manuel, a Cristina [Ferreira] ou os dois. Conheço como trabalham e sei o que cada um gosta. O Manuel é um homem de uma cultura fantástica, também de cultura gastronómica, sabe qual é a minha linguagem culinária. A Cristina é mais apreciadora, gosta mais de provar. Fico deliciado quando a Cristina prova. O gesto deixa-me tão feliz, o dizer que está ótimo. Tenho a preocupação de agradar aos dois ao mesmo tempo. Se está só um é mais fácil para mim, mas tento sempre agradar aos dois.
Então, além de ter criatividade tem de pensar em agradar os apresentadores.
Em televisão tem de se fazer coisas práticas, esta é a a minha opinião e aos anos que estou em televisão. Que funcionem em termos de imagem e sobretudo receitas simples e com produtos acessíveis. Tenho imensa preocupação, mas claro que a preocupação final é agradar ao público em casa. Sei perfeitamente o que vai funcionar em televisão. Claro que os doces são sempre muito bem-vindos e muito apreciados. Depois há o polvo, o bacalhau também, algumas carnes também, e outras que nem por isso.
Nunca testa as receitas antes?
São sempre testadas no dia anterior. Eu só faço a receita depois de ela ser testada.
É o chef que a prepara em casa?
Sim, tudo. Devo dizer que ainda no outro dia recebi o produto do cliente às onze da manhã. O produto esteve a descongelar, fiz a receita, preparei tudo, e passei a receita a limpo às nove e meia da noite. Enviei para a TVI a essa hora para me levantar às quatro e meia da manhã.
E é a produção que trata da compra dos produtos?
Sou eu que faço tudo.
Vem de manhã de Alfa já com tudo feito?
Venho com a preparação toda pronta. O pimentinho cortadinho, o tomate cortadinho, a salsa picadinha. Se é um bolo, tenho de trazer um cozido. Se tenho alguma coisa que é preciso selar, selo em casa, que é muito desagradável. As pessoas não compreendem, mas num estúdio fechado estar a fritar ou selar é muito desagradável para quem está.
Já aconteceu alguma peripécia na televisão?
Tantas, ao longo destes anos aconteceram muitas. Uma delas foi na TVI que eu fiz a receita sem fogão, que a placa pifou. Outra foi não ter noz moscada e tive de ralar uma rolha.
Este na TVI?
Este foi na RTP. Outras vezes é a frigideira que não é compatível com a placa. Acontecem muitas. Mas também coisas de partir o bolo, ou do bolo rebentar, mas isso é normal, faz parte da cozinha, se não acontece é que não era normal. Eu às vezes até gosto que aconteçam para que as pessoas não fiquem com a impressão que nós fazemos tudo muito perfeitinho. Os bolos nunca ficam perfeitos como nós vemos nas fotos.
Ao fim de tantos anos a criar receitas, os livros que lançou, o blog [Chef Hernâni Ermida – A vida com mais sabor, lançado em 2014], como é que ainda há criatividade para criar receitas?
Eu criatividade tenho, não sei explicar. Tenho é de por um travão na minha criatividade. Tenho noção que há coisas que não posso fazer porque não vão funcionar. Mas criatividade tenho, não sei explicar. Criatividade tenho tanto na cozinha como em pastelaria. Porque é uma paixão. É o único amor da minha vida. Foi à cozinha que me dediquei toda a vida, deixei de viver e passear, de passar férias, de estar com amigos, de estar com os meus pais, para me entregar à cozinha.
Lembra-se qual foi o primeiro prato que cozinhou?
Foi arroz. Era um domingo, os meus pais tinham ido à missa e fiquei em casa. Decidi adiantar o almoço e fazer arroz. Era uma coisa que gostava muito e ainda hoje não passo sem comer arroz. Correu mal, deitei muita quantidade de arroz e pouca quantidade de água. O arroz cresceu e acabou por sair fora do tacho. Tinha apenas oito, nove anos.
Nasceu em Barrô, em Resende [1956], e desde cedo que teve de trabalhar em casa. Ajudou os pais na agricultura e fazia muitas vezes a comida par os a irmãos e trabalhadores. Nessa altura alguma vez pensou que ia se tornar chef?
Brincávamos imenso, tínhamos o rio Douro. Nós somos cinco irmãos, a minha mãe sempre desejou ter menina. Eu fui o escolhido, não sei porquê, para ajudar. Não sei se ela escolheu ou viu que eu tinha aptidão para ajudar nas tarefas domésticas. A minha mãe trabalhava no campo, vendia também os legumes e a fruta e eu ajudava a minha mãe. Fui ajudando, ganhando gosto, mas na altura nunca pensava o que queria ser.
Havia alguém que o elogiava pelos pratos que fazia em miúdo?
Quando a minha mãe tinha de ir fazer a venda dos legumes eu fazia a sopa, que era antigamente o pequeno-almoço do pessoal que trabalhava no campo. Era uma sopa forte. A minha mãe ia e ficava descansada. Os trabalhadores só muito tarde perceberam que era eu que fazia a sopa. Pensavam que era a minha mãe que deixava feita, mas era eu que fazia.
Qual foi o primeiro trabalho que teve?
Depois de Resende, fui para o Porto continuar os estudos. Eu disse à minha mãe que queria continuar. Que queria trabalhar, sobretudo. Não era os estudos que me preocupavam. Era trabalhar para ajudar os meus pais. E vim para o Porto, sozinho com 12 anos. A minha mãe falou com uma tia afastada que me arranjou um trabalho no hotel Tuela, no Porto. Arrendei um quarto e comecei a trabalhar no hotel. Comecei a lavar tachos, depois passei para os copos. Ia assim progredindo.
E teve toda essa progressão nesse hotel ?
Sim e no intervalo do hotel, entre as três e as seis horas, ia para Mercado do Bom Sucesso, que é logo em frente, trabalhar numa empresa de bananas, para ganhar mais alguma coisa. O meu ordenado entregava todo aos meus pais. O trabalho extra ajudava a pagar a renda do quarto e ajudava-me a estudar à noite no liceu D. Manuel.
Chegou a estudar em França.
Naquela altura começava a emigração ilegal para França e tinha lá uns tios. A minha mãe falou com eles, e eu também, quando vieram de férias em agosto, se me arranjavam algo para fazer. Eu disse que ia trabalhar para uma cozinha, numa coisa qualquer. E assim aconteceu. O meu tio arranjou-me para ajudar na cozinha de um restaurante perto da casa deles. Passado pouco tempo o dono do restaurante chama o meu tio e diz-lhe: “o teu sobrinho é um homem fantástico, mas ele tem potencial para ir mais longe é uma pena não lhe dar um curso de cozinha”.
Porque até aqui ainda não tinha tido nada de formação.
Eu para mim já era um mestre, mas não no sentido de ser chef, nada disso. Eu estava muito feliz com o que já tinha aprendido porque para mim já estava bem. Trabalhava perto de Paris e foi na escola de Lenôtre que fiz a minha formação de cozinha, pastelaria e até nutrição. Tinha 20 anos. Acabei o curso e fui estagiar para Londres.
Apanhou alguns chefs mais duros, mais exigentes?
Não, eles eram duros para aqueles que não trabalhavam. Por que na cozinha é assim, ou se está com paixão, ou então, estás a fazer um sacrifício enorme. Fui sempre uma pessoa querida dos meus superiores porque era um jovem muito humilde. Eles quase que me escolhiam como confidente.
E depois também chega a trabalhar em barcos?
Um dia estava a passar na rua em Londres e vi numa agência que estavam a pedir pessoal para trabalhar a bordo de barcos na América. Entrei, perguntei o que era preciso. Comecei por fazer as Caraíbas em cruzeiros de três, cinco dias. Depois também fui ao México, passava o canal do Panamá e o Alasca. Foram os melhores anos da minha vida. Nunca desperdicei uma oportunidade profissional para aprender.
Como é a vida a bordo?
É uma vida muito dura, não há folgas. Quando paramos em algum porto, tínhamos algumas horas à tarde. Ou se vai passear e conhecer ou se vai dormir. Mas com aquela idade [23 anos], queria era curtir e conhecer praias lindíssimas, conhecer os sítios. Sempre me interessei por cultura local e pela gastronomia. E acho que isso hoje se reflete na minha maneira de trabalhar e nas minhas receitas. Fui para trabalhar oito meses e fiquei nove anos.
Hernâni Ermida esteve na redação da NiT depois de cozinhar uma sapateira recheada.
E vinha a Portugal ?
Todos os anos vinha. Nas épocas festivas são as que há menos pessoal. Vinha sempre em março e abril. Sempre muito queimado e moreno. As pessoas olhavam para mim de maneira estranha.
E quando é que abre o primeiro espaço no Porto?
Vim de férias dos barcos e encontrei uma senhora que estava a montar um restaurante na Ribeira do Porto. A Ribeira estava a começar a abrir, não era o que é hoje, era completamente diferente. Não me lembro como nos conhecemos, ela sabia do meu currículo e propôs-me sociedade. Já tinha um sócio, mas faltava-lhe um sócio que soubesse de cozinha. Eu era o ideal. Acabei por aceitar. Foi um restaurante que trabalhou imenso, era fantástico. Chamava-se o Meeting. Toda a carta foi feita por mim, a formação do pessoal, as sobremesas e as compras. Os sócios só iam ao final do dia. Mas era muito jovem, tinha 26 anos.
E teve outros restaurantes no Porto?
Tive outros, mas com pouco significado.
E nunca teve o objetivo de ter um espaço próprio?
Não, de todo, nunca tive. Nem tenho. Eu não sou líder, eu não sei mandar, não sei gritar com as pessoas, ou dizer que fizeram mal feito. Não sei, não sou capaz. Sou melhor gestor do que líder, do que mandar, ou levantar a voz, não sou capaz. E talvez por isso nunca tive intenções de ter o meu espaço, o meu restaurante.