Era uma figura marcante na comunidade portuguesa do running, apesar de a sua história ter começado no Brasil, onde nasceu e viveu até 1986. Analice Silva morreu na quinta-feira, 23 de fevereiro, de um cancro do pâncreas que tinha descoberto no primeiro dia de 2017. Tinha 72 anos.
A vida desta atleta foi difícil até descobrir a corrida, aquilo de que realmente gostava de fazer — e em que era tremendamente talentosa. Nascida em Esperança, uma vila em Paraíba, nordeste do Brasil, Analice teve uma infância marcada pela tragédia. “Tive seis irmãos, mas quatro morreram. Só fiquei eu e a minha irmã mais nova”, disse em entrevista à “Sábado” em setembro de 2012.
Tinha apenas três anos quando o pai a entregou a uma senhora que vivia na cidade mais próxima, Campina Grande. Abandonada pela família, onde havia “falta de amor”, também não teve um destino melhor. Aquela senhora fez de si sua escrava.
“Eu fazia tudo o que havia para fazer, desde os três ou quatro anos de idade. Cuidava de bebés e aguentava o trabalho de roça, ou quinta, como se diz aqui em Portugal. Era escravatura, mesmo.”
Não havia qualquer salário ao fim do mês, apenas recebia uma cama para dormir. “Comida só mesmo quando havia.” Numa ocasião ficou de castigo por ter comido um pedaço de pão sem ter pedido autorização. “Era gente pobre armada em rica, que queria ter criados, mas que não podia pagar. E então tinha escravos.”
Aos oito anos, foi devolvida à família, mas o regresso também não foi feliz. Nada tinha mudado. “Não havia aconchego, só violência. E então fugi.” Apanhou um autocarro para a cidade do Recife e continuou a fazer trabalhos sem receber dinheiro.
Foi lá que conheceu o futuro marido, Evandro, um pescador de lagostas que também não lhe deu uma vida fácil. “Antes de nos casarmos, disse-lhe que tolerava tudo no casamento, menos porrada”. Então o marido magoou-a de outras formas. “Estourava todo o dinheiro que ganhava em meninas e bebida. Mas eu fechava os olhos, desde que ele não me batesse”. Não durou muito, e após seis meses de casamento, um empurrão levou a que Analice deixasse Evandro, praticamente apenas com o dinheiro para comprar um bilhete de autocarro para o Rio de Janeiro. “Foram oito dias de viagem, por estradas de asfalto. Passei tanto frio e tanta fome que só eu sei.”
Passado algumas semanas a fazer trabalhos de limpeza numa casa e a cuidar de crianças, apercebeu-se de que estava grávida. Não contou nada ao marido. “Ele nem sabia que eu estava no Rio. Deixei-lhe um bilhete a dizer que tinha ido para norte, e vim para sul, para ele não me procurar.”
Mais uma tragédia na vida de Analice: o seu bebé nasceu morto, passado sete meses de gravidez. “Hoje, acho até que foi uma sorte. Eu não podia ter uma criança naquelas condições. Para quê? Para virar um malandro?” Nunca mais quis ter filhos. Fumadora há vários anos, foi nos últimos cinco minutos de 1980 que apagou pela última vez um cigarro. Tinha lido num jornal a notícia de que os pulmões de um fumador precisam de dez anos para recuperar a saúde.
“Dez anos é muito tempo. Fiquei assustada. Então achei que a única maneira de voltar a ter os meus pulmões cor-de-rosa era correndo. E comecei logo nessa noite.”
Fez 16 quilómetros de chinelos no calçadão de Copacabana, provavelmente enquanto o fogo de artifício da Passagem de Ano ainda explodia no céu. Nunca mais parou — correu todos os dias naquele mês de janeiro. Acabou por entrar na sua primeira prova, a Corrida Feminina da Avon, e levar uma medalha para casa. A corrida tornou-se um vício aos 37 anos.
Um ano depois, fazia a primeira maratona e a primeira prova de 100 quilómetros entre Uberlândia e Uberaba, em montanha. “Venci essa prova e fiz 11h42, que passou a ser recorde sul-americano. E foi durante muito tempo. Nos três anos seguintes ganhei sempre essa corrida.”